Em sua palestra no principal evento na área de beleza consciente, Miguel Duarte destacou os impactos e oportunidades no setor pós-pandemia.
Em 2012, a equipe de consultoria estratégica da EY liderou um exercício de cenarização com executivos seniores de vários setores — bancos, infraestrutura, internet, mídia, mobilidade, agronegócio, entre outros: um think tank setorial — relevantes para o PIB do Brasil. O objetivo foi criar quatro cenários hipotéticos de igual probabilidade para o país em 2022.
Depois de alguns meses de debate e coleta de informações, foram eleitas cerca de 30 tendências e duas incertezas críticas para conduzir a discussão estratégica — o crescimento dos países asiáticos e o fechamento no gap de infraestruturas existentes no Brasil. Hoje, olhando para esse exercício de construção de cenários, todos os executivos participantes recordarão como foi difícil acreditar em 2012 num Brasil com baixa capacidade de investimento e atrelado ao baixo crescimento dos países asiáticos em 2022. Contudo, nenhum deles esquece o mérito de termos criado o foresight necessário para encarar uma década na qual o forecast definitivamente não ajudou.
Hoje, em 2020, quase uma década depois, a única certeza que se reforçou foi a necessidade de permanentemente revermos megatendências, tendências e incertezas críticas para novos e recorrentes exercícios de cenários. Construir “do futuro para trás” as perspectivas que vão apoiar a estratégia do negócio é disciplina obrigatória em qualquer organização. Um mundo exponencial, em que algumas wild cards (nomenclatura dada a eventos de alto impacto e de mínima probabilidade em exercícios de cenarização) como a covid-19 e eventos climáticos extremos transformam o contexto dos negócios em poucos dias ou semanas, exige novas ferramentas de reflexão.
O recente estudo Megatrends 2020 desenvolvido pela EY, foi apresentado no Green Cosmetics Summit 2020, abordando conteúdos para discussões estratégicas mais exploratórias e menos atreladas ao passado. Oito megatendências identificadas estão ancoradas em quatro forças primárias que moldam o atual contexto em que vivemos e definirão as linhas mestras dos nossos sistemas econômicos, políticos e sociais: a) tecnologias exponenciais, b) globalização redefinida, c) emergência da geração Z e d) impactos extremos das alterações climáticas.
Uma grande convergência de tecnologias exponenciais está em curso e garantirá saltos quânticos em todos os aspetos da vida humana. Tecnologias como 5G, capaz de aumentar em 100 vezes a velocidade de dados utilizando apenas um décimo de energia, sensores de alta precisão ou computação quântica serão parte de uma nova infraestrutura que multiplicará o potencial humano em todas as suas dimensões. São evoluções em ritmos exponenciais, que rapidamente estarão no dia a dia de todos nós, transformando radicalmente a forma como a sociedade se organiza, produz e cria valor.
A globalização como prevista por nós no início da década passada sofreu novos abalos e ganhou outros rumos. A recessão global que abriu esta última década e a crescente desigualdade de oportunidades em algumas regiões do mundo deram espaço ao aumento de movimentos nacionalistas e protecionistas que encontram na globalização um inimigo. Nestes últimos anos, as guerras comerciais entre países e blocos ganharam relevância em relação aos acordos de livre comércio.
Já a emergência de uma nova geração traz um novo tipo de desafio a todas as sociedades. As pessoas nascidas entre o começo dos anos 90 e o início dos anos 10 do século 21 — a chamada geração Z — constituirão o mais populoso grupo de uma só geração que terá existido na história — 1,8 bilhão de nativos digitais. As expectativas e contributivos desse grupo para a transformação social, econômica e política serão visivelmente relevantes nas duas próximas décadas. Esta será provavelmente a fonte das grandes transformações sociais. Quando a convergência das tecnologias exponenciais encontrar essa massiva geração Z de nativos digitais — 96% possui smartphone e, em média, dedicam três horas do seu dia a redes sociais —, assistiremos a grandes saltos civilizacionais em pouquíssimo tempo.
As alterações climáticas e as respectivas consequências extremas estão também entre as grandes forças primárias que moldam a evolução da economia, política e sociedade. Com a intensificação de acontecimentos extremos veremos impactos na produtividade das cadeias globais de suprimentos. Insegurança alimentar demandará uma solução mais coordenada por instituições supranacionais, e a simples ameaça de subida do nível das águas em regiões costeiras de grande densidade populacional exigirá recursos para redesenhar ecossistemas urbanos.
Todas as quatro forças primárias mencionadas acima representam o ponto de partida de um conjunto de oito megatendências que precisam de acompanhamento permanente: 1) descarbonização, 2) guerra fria tecnológica, 3) economia comportamental, 4) mídia sintética, 5) futuro do pensamento, 6) trabalho e vida sem fronteiras, 7) microbiomas e 8) biologia sintética.
1. A descarbonização, potencializada por tecnologias exponenciais, é uma resposta natural às alterações climáticas
Novas soluções para zerar as emissões de carbono estão surgindo e impulsionando a criação de valor no longo prazo por meio da liderança climática. Mais de 3 mil pedidos de patentes relacionadas a inovações em redução de carbono foram apresentados de 2009 a 2018. Contudo, a próxima fronteira na agenda de carbono consistirá em antes capturar e transformar o carbono em fonte de valor. As organizações necessitam ir além da neutralidade de emissões e focar os seus esforços na geração de externalidades ambientais positivas. A Microsoft, por exemplo, declarou recentemente que ambiciona ter pegada de carbono negativa em 2030, eliminando todo o carbono que emitiu desde a fundação da empresa.
De uns anos para cá tem sido possível acompanhar a evolução de tecnologias experimentais para transformar CO2 em materiais valiosos. Diamantes ou nanofibras de carbono para uso industrial e bens de consumo são apenas alguns dos potenciais usos de alto valor esperados para o futuro. Em fevereiro deste ano, a revista Science explicou num artigo que engenheiros químicos do Rensselaer Poltytechnic Institute demonstraram como converter CO2 em metanol através de uma membrana de alta eficácia. Estas formas de utilizar o elemento e a evolução das tecnologias que o possibilitam provam que o próximo passo está além do que chamamos de offset. Estamos na era da gestão de um ciclo virtuoso do carbono em processos e indústrias.
2. Guerra fria tecnológica é causa e consequência de uma globalização “travada”
Os grandes blocos político-econômicos estão redesenhando suas fronteiras de influência e a procurar a supremacia tecnológica como meio de alcançar a supremacia política e econômica. Iniciativas como Made in China 2025 são essencialmente motivadas pela crescente competição para dominar a próxima geração de infraestrutura tecnológica. Esta corrida gera pressões e ameaças que alimentam barreiras maiores ao comércio internacional. No mundo ocidental (EUA e Reino Unido, por exemplo) aumenta a análise sobre operações de empresas chinesas de tecnologia e sobre cientistas chineses que trabalham nesses países. A Rússia proibiu a utilização de dispositivos eletrônicos cujo software não fosse nacional, e a China impediu que algumas empresas americanas de tecnologia operassem no país. As preocupações relacionadas com segurança de dados, risco para a segurança nacional ou espionagem industrial conduzem a ações que limitam as transações comerciais e a propagação de novas tecnologias como 5G, inteligência artificial ou reconhecimento facial.
Como qualquer guerra, esta limita também o potencial tecnológico, desacelerando o progresso da humanidade como um todo. Governos, empresas e cidadãos, ao mesmo tempo que alocam recursos para se resguardar de ataques cibernéticos e roubo de dados provenientes de várias frentes potenciais, levantam barreiras à adoção de tecnologias que aumentem seu nível de risco.
3. Economia comportamental será potenciada pelos nativos digitais
O comportamento humano está se tornando uma mercadoria — quantificada, padronizada, empacotada e comercializada. A captura de dados online sobre todas as vertentes do comportamento humano, em tempo real e em níveis bastante granulares (localização, pesquisas e navegação), permite conhecer emoções e reações de cada indivíduo que poderão ser utilizadas para prever e influenciar decisões de forma eficaz. Com o poder dos dados, será possível trabalhar a inteligência e prever comportamentos, tanto quanto moldá-los. Empresas e governos ganharão cada vez mais esta capacidade de transformar dados em inteligência útil.
A próxima fronteira neste tema está relacionada à computação afetiva. Combinando ciência da computação e psicologia, as máquinas serão capazes de reconhecer emoções e se adaptar a cada interação.
Alguns varejistas já começaram a testar câmeras capazes de reconhecer expressões faciais e correlacioná-las com o estado emocional dos consumidores. Quando esses dados passarem à inteligência, será possível responder a cada consumidor de forma personalizada e moldar suas emoções.
Investimentos no setor cresceram 146% nos últimos cinco anos e nos colocaram em um mundo cada vez mais preciso, com sofisticados instrumentos de persuasão. Imagine um avatar de vendedor que possa manter simultaneamente o contato visual com centenas clientes enquanto modifica seu sotaque, escolhe palavras e tom de voz com base nos dados de preferências do cliente?
4. Mídia sintética e destruição de reputações no mundo digital
A mídia sintética está emergindo como um novo risco cibernético para empresas e indivíduos. Garantir autenticidade será crítico para manter a confiança dos stakeholders, preservar a reputação da marca e impulsionar o desempenho dos negócios. Por exemplo, três ataques bem-sucedidos de áudio que falsificavam a voz de um CEO deram início a uma série de transferências bancárias. O resultado foi o roubo de milhões de dólares. Cada vez mais veremos situações semelhantes e ainda uma nova criminalidade associada à capacidade de desenvolver informação falsa ou manipulada. Já conhecemos hoje esses efeitos sobre políticos e celebridades, mas o risco será massificado, e empresas e cidadãos necessitarão de proteção contra potenciais ataques.
Novas ferramentas e técnicas de autenticação serão parte de um arsenal de segurança cibernética que toda empresa e todo indivíduo necessitam manusear para proteger sua reputação e seu negócio.
5. Futuro do pensamento dependerá do uso que fizermos da tecnologia em nosso favor
Pesquisa realizada no Reino Unido demonstrou que 66% dos adultos são viciados no celular. O millennial típico o consulta cerca de 150 vezes por dia, e uma análise da EY demonstrou que a cobertura midiática do “vício do celular e desenvolvimento dos jovens” aumentou 251% entre 2017 e 2018.
Nesse cenário o consumo da informação mudou radicalmente. As redes sociais, principal fonte de informação de bilhões de pessoas, tornaram cada vez mais difícil distinguir informação de qualidade e fundamentada de informação falsa ou pouco confiável. Ao mesmo tempo, a quantidade de notícias aumentou de forma exponencial, criando dificuldade de foco e seleção para todos os usuários.
Muitas das consultas que os consumidores fazem nas redes sociais duram alguns minutos ou segundos e limitam a capacidade de entender e formar opinião. Estes são desafios que tornam evidente a forma como a tecnologia está moldando nosso modo de ler a realidade e pensar criticamente.
A conexão direta entre tecnologia e cérebro humano levará esta discussão a outro patamar. Utilizar tecnologias exponenciais para potenciar as capacidades da mente humana poderá trazer novos desafios, mas também formas mais inteligentes de usar a informação.
6. Trabalho e vida sem fronteiras num contexto de tecnologias exponenciais
Estamos nos movendo rumo a um futuro em que os indivíduos buscarão, de acordo com suas circunstâncias de vida, conciliar trabalho, lazer e aprendizado de forma permanente e com elevada autonomia. Conceitos como férias, fins de semana, estudo e trabalho serão redefinidos. Mesmo antes da pandemia já se começava a discutir em algumas empresas o experimento da semana de quatro dias de trabalho. Algumas dessas mudanças foram aceleradas na pandemia e perdurarão depois que ela passar. Com a redução dos deslocamentos, os trabalhadores ganharam produtividade, mais momentos de lazer e espaço para outras rotinas diárias.
Tecnologias exponenciais têm novamente papel de destaque. Se hoje conseguimos transformar em algumas semanas o nosso modelo de trabalho com ferramentas como Teams ou Zoom, imaginemos o potencial transformacional que a tecnologia 5G e a realidade aumentada trarão à presença virtual e à organização das rotinas de trabalho!
7. Microbiomas a serviço dos grandes problemas da humanidade — saúde e risco climático
Microbiomas já são utilizados em inúmeros processos, desde a fabricação de antibióticos e insulina artificial até a transformação de biomassa em biocombustíveis. E o surgimento de um poderoso conjunto de ferramentas está permitindo não apenas entendê-los melhor, mas aproveitar todas as suas potencialidades. Em 2019, foram investidos US$ 621 milhões em startups que buscam soluções de microbiomas relacionadas ao clima e à agricultura. Doenças causadas por microbiomas incluem diabetes tipo II, câncer, alergias alimentares, Parkinson, obesidade, autismo, depressão, ansiedade e as inflamatórias de diversos tipos, como artrite reumatoide.
Para a próxima década podemos esperar grandes contributos dos microbiomas para a humanidade, com várias soluções a emergir do tesouro bioquímico a serviço de quase todas as indústrias.
8. Biologia sintética e a interseção com tecnologias exponenciais
A biologia sintética é uma ciência interdisciplinar que usa a engenharia aplicada à biologia para desenhar e construir funções em células. Essa abordagem padroniza sistemas biológicos para copiar, alterar e dimensionar inovações em genética com mais rapidez. Para ter ideia da velocidade da mudança: o primeiro sequenciamento do genoma humano exigiu 13 anos e US$ 3 bilhões. Hoje, leva uma semana e apenas US$ 600.
As ferramentas da biologia sintética estão sendo exploradas no mundo todo em busca de resposta à covid-19. Quando surgiu a pandemia, várias empresas do setor interromperam pesquisas em curso para concentrar-se no novo coronavírus. Os recursos empregados já permitiram chegar a resultados positivos e até melhores do que abordagens clássicas, que utilizam formas enfraquecidas ou neutralizadas do vírus.
Os governos globais reconhecem a biologia sintética como uma área de oportunidade econômica e com alto potencial de resolução de grandes problemas. China, Singapura e Reino Unido já definiram suas aplicações como prioridade industrial nacional; Japão tem para ela uma estratégia específica; os Estados a identificam como crucial em inovação, emprego e sustentabilidade; e a União Europeia financia iniciativas na área.
Construir estratégia por meio da exploração do futuro
As oito megatendências têm enorme potencial de gerar transformações profundas em todas as indústrias. Na próxima década, modelos de negócio, produtos e serviços, mercados priorizados nas mais diversas indústrias poderão ser redefinidos por uma ou mais das oito megatendências. Empresas de qualquer dimensão necessitarão incluir algumas perguntas-
chave nos seus modelos estratégicos:
• Onde operar tendo em conta o novo contexto da globalização?
• Como operar para garantir a descarbonização do negócio?
• Como se preparar para os consumidores nativos digitais da geração Z?
• Que práticas serão necessárias para operar dentro de uma realidade cibernética de grandes riscos?
• Como adaptar o modelo de trabalho a uma mão de obra que se beneficiará das novas tecnologias exponenciais?
• Que contribuições darão a biologia sintética e os microbiomas para enfrentar os desafios da cadeia de valor ou redefinir produtos e subprodutos?
Perguntas como essas necessitam ser incorporadas em exercícios de planejamento estratégico e criação de cenários como tendências ou incertezas que impactarão o mundo corporativo na próxima década. Este nível de previsão é capaz de prepará-lo para vários cenários potenciais e assegurar que nenhuma pergunta essencial fique de fora num horizonte de dez anos.
Miguel Duarte é sócio da EY-Parthenon e líder do segmento de varejo e bens de consumo da EY no Brasil e América do Sul.