Amazônia 4.0. A criação de ecossistemas de inovação e o enraizamento de uma nova bioeconomia
No contexto da Revolução 4.0 e da economia do século XXI, é preciso apostar na bioeconomia baseada no uso dos ativos biológicos e biomiméticos para desenvolver a Amazônia, defende Carlos Nobre na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line. Nessa perspectiva, explica, a “‘Terceira Via’ que propomos é exatamente buscar uma alternativa econômica ao confronto entre a Primeira e a Segunda Via, destacando o papel que as novas tecnologias que nos chegam irreversivelmente através da Quarta Revolução Industrial podem desempenhar em fazer emergir o enorme valor tangível dos ativos biológicos e biomiméticos da biodiversidade.
Estes valores estão ainda ‘escondidos’ e precisamos de ciência e tecnologia intensivos na região para torná-los uma realidade, aliados a maneiras inovadoras de aproveitamento do vasto conhecimento tradicional, respeitando a justa e correta repartição de benefícios com as populações locais detentoras deste conhecimento”.
A terceira via para o desenvolvimento da Amazônia se contrapõe a outros dois modelos, que até recentemente foram privilegiados na discussão: “conciliar a proteção dos ecossistemas em unidades de conservação, terras indígenas e reservas extrativistas (…) com a chamada intensificação sustentável da agropecuária e contenção dos desmatamentos causados pela expansão das fronteiras agrícolas e da mineração e hidroeletricidade, isto é, um modelo intensivo em recursos naturais”, informa o pesquisador.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Nobre frisa que o potencial dos ativos biológicos e biomiméticos da biodiversidade é enorme. “Vejamos, como exemplo, a cadeia produtiva do açaí. Até duas décadas atrás, um fruto de consumo tradicional local. Hoje, da polpa do açaí derivam dezenas de diferentes produtos para as indústrias alimentícia, nutracêutica, cosmética etc., gerando já mais de 1,5 bilhão de dólares para a economia Amazônica a cada ano, tendo melhorado a renda de mais de 250 mil produtores. Se este mesmo caminho fosse aplicado a várias dezenas de produtos Amazônicos — com ciência e tecnologia para agregação de valor desde a base de produção para beneficiar as populações locais —, esta nova bioeconomia seria muito maior do que aquela proveniente de pecuária, grãos e exploração madeireira”, adverte.
Segundo ele, investimentos nesse sentido trariam “mais desenvolvimento local, principalmente se forem criadas inúmeras bioindústrias na própria região Amazônica, produzindo e exportando produtos de muito maior valor agregado, gerando melhores empregos e inclusão social. A economia da Amazônia tornando-se mais importante irá obviamente beneficiar o país como um todo”.
Carlos Nobre é graduado em Engenharia Eletrônica pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica – ITA e doutor em Meteorologia pelo Massachusetts Institute of Technology – MIT. Foi pesquisador no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia – Inpa e no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – Inpe.
Exerceu funções de gestão e coordenação científicas e de política científica, atuando como presidente da Capes, diretor do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais – Cemaden, secretário de Políticas e Programas de Pesquisa e Desenvolvimento do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação – MCTI, chefe do Centro de Ciência do Sistema Terrestre – CCST-Inpe e coordenador geral do Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos – CPTEC-Inpe.
Também atuou na coordenação de experimentos científicos, como coordenador científico do Experimento de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia – LBA, coordenador brasileiro do Anglo-Brazilian Climate Observations Study – Abracos e coordenador brasileiro do Experimento Amazalert entre instituições europeias e sul-americanas. Exerceu a presidência do International Advisory Group do Programa de Proteção das Florestas Tropicais do Brasil – PP-G7.
Atualmente é membro do Joint Steering Committee do World Climate Research Programme – WCRP, preside os Conselhos Diretores da Rede Brasileira de Pesquisas sobre Mudanças Climáticas – Rede Clima e do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas – PBMC, e é coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Mudanças Climáticas – INCT-MC.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Alguns ativistas que defendem a Amazônia argumentam que a região precisa não só ser protegida ambientalmente, mas é fundamental se pensar um modelo econômico para a Amazônia. Concorda com essa visão? Na sua avaliação, o Estado brasileiro tem consciência da importância de se elaborar um modelo econômico adequado para a Amazônia?
Carlos Nobre – Sem dúvida, o grande potencial econômico de regiões com alta biodiversidade como a Amazônia está exatamente na diversidade de espécies e no potencial aproveitamento econômico dos ativos biológicos e biomiméticos em uma inovadora bioeconomia. Ainda que haja, em qualquer plano governamental para a Amazônia, alguma menção à valorização de cadeias produtivas oriundas da biodiversidade, os investimentos públicos e privados em ciência, tecnologia e inovação para fazer emergir esta nova bioeconomia são extremamente reduzidos, quando comparados aos investimentos numa economia baseada na substituição da floresta para produção de carne, grãos e minérios.
IHU On-Line – Pode nos explicar em que consiste a “terceira via” para o desenvolvimento sustentável da Amazônia, baseado numa noção de conhecimento científico e tecnológico, segundo sua proposta?
Carlos Nobre – Por muito tempo, o debate sobre o desenvolvimento da Amazônia ficou restrito a se buscar conciliar a proteção dos ecossistemas em unidades de conservação, terras indígenas e reservas extrativistas (que chamamos de “Primeira Via”) com a chamada intensificação sustentável da agropecuária e contenção dos desmatamentos causados pela expansão das fronteiras agrícolas e da mineração e hidroeletricidade, isto é, um modelo intensivo em recursos naturais (que denominamos de “Segunda Via”). Este debate não ajudou a frear a expansão do desmatamento, ainda que se deva reconhecer que a política de expansão das unidades de conservação e demarcação de terras indígenas foi fator preponderante na redução de mais de 70% nas taxas anuais de desmatamento entre 2005 e 2014.
A “Terceira Via” que propomos é exatamente buscar uma alternativa econômica ao confronto entre a Primeira e a Segunda Via, destacando o papel que as novas tecnologias que nos chegam irreversivelmente através da Quarta Revolução Industrial podem desempenhar em fazer emergir o enorme valor tangível dos ativos biológicos e biomiméticos da biodiversidade. Estes valores estão ainda “escondidos” e precisamos de ciência e tecnologia intensivos na região para torná-los uma realidade, aliados a maneiras inovadoras de aproveitamento do vasto conhecimento tradicional, respeitando a justa e correta repartição de benefícios com as populações locais detentoras deste conhecimento.
IHU On-Line – Por que o investimento em conhecimento científico e tecnológico na Amazônia é, na sua avaliação, o melhor modelo de desenvolvimento para a região? Que benefícios esse modelo traria não só para a região, mas para o Brasil como um todo?
Carlos Nobre – O potencial dos ativos biológicos e biomiméticos da biodiversidade é enorme. Vejamos, como exemplo, a cadeia produtiva do açaí. Até duas décadas atrás, um fruto de consumo tradicional local. Hoje, da polpa do açaí derivam dezenas de diferentes produtos para as indústrias alimentícia, nutracêutica, cosmética etc., gerando já mais de 1,5 bilhão de dólares para a economia Amazônica a cada ano, tendo melhorado a renda de mais de 250 mil produtores. Se este mesmo caminho fosse aplicado a várias dezenas de produtos Amazônicos — com ciência e tecnologia para agregação de valor desde a base de produção para beneficiar as populações locais —, esta nova bioeconomia seria muito maior do que aquela proveniente de pecuária, grãos e exploração madeireira.
Em primeiro lugar, traria mais desenvolvimento local, principalmente se forem criadas inúmeras bioindústrias na própria região Amazônica, produzindo e exportando produtos de muito maior valor agregado, gerando melhores empregos e inclusão social. A economia da Amazônia tornando-se mais importante irá obviamente beneficiar o país como um todo.
IHU On-Line – Que papel as universidades da região poderiam desempenhar na elaboração desse projeto que o senhor propõe?
Carlos Nobre – É essencial que as universidades desempenhem papel central. Em primeiro lugar, formando pessoas para esta nova bioeconomia, algo ainda muito distante do típico currículo escolar das universidades da Amazônia, os quais reproduzem acriticamente modelos de universidades, formações, carreiras de outras regiões do país. Em segundo lugar, os laboratórios públicos das universidades e dos institutos de pesquisa devem ser equipados como ‘laboratórios avançados de biologia’ para fornecer o conhecimento a ser transformado em aplicações para esta nova bioeconomia e também para formar uma nova geração de pesquisadores e empreendedores para esta inovadora bioeconomia, base de uma revolucionária bioindustrialização para a região. Há igualmente papel relevante para que estas novas bioindústrias nasçam com o espírito inovador e invistam fortemente em P&D, algo extremamente deficiente na indústria brasileira como um todo.
IHU On-Line – Sempre que se fala em desenvolvimento da Amazônia, ativistas da região chamam atenção para a necessidade de incluir a população da floresta neste projeto. Como a população da região seria incluída na sua proposta?
Carlos Nobre – A Quarta Revolução Industrial não está somente produzindo a união das tecnologias digitais, biológicas e de materiais, mas concomitantemente está tornando possível o acesso simplificado a estas novas tecnologias a um custo cada vez menor. Isso propicia pela primeira vez que tais tecnologias cheguem aos povos da floresta em qualquer remoto rincão da Amazônia. Por outro lado, o conhecimento é o maior valor econômico do século XXI e não necessariamente a transformação material. Deste modo, há que se capacitar os povos da floresta, incluindo as comunidades indígenas, para adquirir os conhecimentos sobre os ativos biológicos e biomiméticos e poder se beneficiar economicamente deste conhecimento. Assim, é central à implementação da Terceira Via que a capacitação se inicie com os povos da floresta e comunidades locais, ao mesmo tempo que se desenvolvam as condições para o surgimento das bioindústrias de vários tamanhos e complexidades, mas majoritariamente em vilas e cidades amazônicas.
IHU On-Line – Qual é a capacidade atual do Brasil em investir nesse modelo que o senhor propõe e, nesse sentido, quais os desafios para colocar esse projeto em andamento?
Carlos Nobre – Ainda que estejamos atravessando uma profunda recessão econômica, refletida em cortes radicais no financiamento público de C&T, não se necessitaria de valores gigantescos para a prova de conceito da Terceira Via. O maior desafio é iniciar a implementação de alguns experimentos pilotos para mostrar que é factível capacitar comunidades em utilização de modernas tecnologias para modernização radical do aproveitamento do potencial da biodiversidade Amazônica. Estamos propondo a criação dos chamados “Laboratórios Criativos Amazônicos”, estruturas portáteis e itinerantes que viajariam pela Amazônia promovendo a capacitação de populações no uso de novas tecnologias em cadeias produtivas existentes e principalmente para geração de novos usos e produtos a partir dos ativos biológicos e biomiméticos da floresta.
IHU On-Line – O senhor tem alertado para a importância de um “forte engajamento” entre as instituições de pesquisa da região amazônica para pôr esse projeto em prática. Como as diferentes instituições que atuam na região têm se posicionado sobre a sua proposta de desenvolvimento para a Amazônia? Há mais concordância ou discordância e por quais razões?
Carlos Nobre – A iniciativa da Terceira Via Amazônica, que também denominamos “Amazônia 4.0”, em alusão à Quarta Revolução Industrial, está em seus primórdios de discussão e aprofundamento conceitual. Há, de modo geral, grande concordância entre instituições de pesquisa Amazônicas de que se deve buscar modelos alternativos e sustentáveis de desenvolvimento e que uma bioeconomia baseada na floresta em pé deve ser testada e deve adquirir escala. Deve-se mencionar que a ideia de uma bioeconomia baseada na biodiversidade é antiga na Amazônia. O elemento inovador da Terceira Via é propor trazer para o seio da floresta e das comunidades as modernas tecnologias que lhes propiciarão enorme poder de gerar novos conhecimentos e agregar valor aos produtos produzidos localmente.
IHU On-Line – O senhor tem discutido essa proposta de desenvolvimento para a Amazônia no meio político, com algum setor do Estado especificamente? Qual tem sido a repercussão política da proposta?
Carlos Nobre – Alguns representantes da classe política já tiveram conhecimento da proposta. Porém, o nível de discussão dessas propostas ainda é restrito. Temos conversado com o Fundo Amazônia sobre a necessidade de trazer inovação de ponta para a Amazônia, criando ‘ecossistemas de inovação’ que permitam o enraizamento de uma nova bioeconomia.
IHU On-Line – O senhor já declarou que sua proposta de desenvolvimento para a Amazônia envolverá, numa segunda fase, as outras Amazônias. O que tem pensado nesse sentido?
Carlos Nobre – Globalmente falando, o aproveitamento da biodiversidade tropical em inovadores modelos de bioeconomia é bastante modesto, quase inexistente. Se tal iniciativa puder mostrar-se viável para a Amazônia, é provável que possa ser implementada com sucesso em outras regiões tropicais, inclusive da América do Sul, ricas em biodiversidade.
IHU On-Line – Para além da expansão do agronegócio, que outros modelos de desenvolvimento ditos “ambientalmente corretos” para a Amazônia se contrapõem à sua proposta e estão em disputa neste momento?
Carlos Nobre – Ainda há uma prevalência na atuação de muitas ONGs ambientalistas sérias de uma tentativa de ‘disciplinar’ o grande agronegócio para frear a expansão da fronteira agropecuária na Amazônia. Politicamente, o mundo da conservação e o mundo da expansão do modelo intensivo em recursos naturais continuam em acirrada disputa e atraem a maior parte das atenções. Até porque, temos visto uma forte tendência de enfraquecimento da legislação ambiental no país. A chamada intensificação sustentável da agropecuária é condição necessária, mas muito longe de ser suficiente para de fato frear o desmatamento da Amazônia e do Cerrado. Ao contrário, quando a atividade da agropecuária torna-se muito mais rentável devido ao aumento da produtividade, a tendência é que ocupe área ainda maior e se expanda.
Frear o desmatamento requer uma política pública de desmatamento zero, que é, aliás, o desejo da maior parte da população brasileira. É possível, sim, o Brasil continuar a ser uma potência na produção de alimentos utilizando os cerca de 270 milhões de hectares já em atividade agropecuária e silvicultura.
IHU On-Line – Alguns ambientalistas têm chamado atenção para um processo de “favelização” da Amazônia, fazendo referência ao empobrecimento e ao aumento da violência na região. Na sua avaliação, esse fenômeno de fato existe? Quais são suas causas?
Carlos Nobre – Como no resto do Brasil, a tendência de urbanização também ocorre na Amazônia, onde mais de 70% da população é urbana. Não diferente da caótica urbanização das cidades brasileiras, o fluxo migratório para as cidades grandes e médias tem resultado em grandes contingentes de pobres urbanos, que, apesar de estarem mais próximos a oportunidades educacionais e de atendimento de saúde, não atingiram níveis mínimos de qualidade de vida. A violência no campo é outra característica infeliz do modo de ocupação das terras na Amazônia, onde prevalece o crime organizado de grilagem de terras e exploração ilegal de madeira e de metais e pedras de valor, interligado também ao tráfico internacional de drogas e de armas. Um triste e sério problema que deve ser enfrentado pela nação como um todo.
IHU On-Line – Algum dos candidatos à presidência da República sinaliza um projeto de desenvolvimento para a Amazônia ancorado no modelo que o senhor sugere?
Carlos Nobre – Estas ideias de uma nova bioeconomia baseada no uso dos ativos biológicos e biomiméticos da Amazônia fazendo uso das modernas tecnologias da Quarta Revolução Industrial ainda não atingiram campanhas presidenciais, até porque os conceitos ainda estão em desenvolvimento e as campanhas buscam linguagens acessíveis de comunicação com a população. A maioria dos candidatos postos até o momento é ligada ao grande agronegócio e dificilmente se interessaria por um modelo revolucionário e inovador como a Terceira Via Amazônica, ainda que repitam sem pestanejar que irão “proteger a Natureza”.
IHU On-Line – Qual sua avaliação da Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura, movimento multisetorial composto por mais de 170 membros, entre entidades que lideram o agronegócio no Brasil, as principais ONGs da área de meio ambiente e clima e representantes do meio acadêmico, que apresentará aos principais candidatos às eleições deste ano um conjunto de 28 propostas, relacionadas ao uso da terra? Elas são factíveis de serem alcançadas em um mandato de quatro anos?
Carlos Nobre – Eu sou membro da Coalizão. Sim, as 28 propostas são factíveis e, de modo geral, apontam um caminho de redução da expansão da fronteira agrícola, com ganhos de produtividade, além de sinalizar a importância da regularização fundiária e destinação para fins de conservação dos mais de 60 milhões de hectares de terras públicas. Trata-se de um roteiro de bom-senso. Por outro lado, já há setores do agronegócio, alguns representados na Coligação, que apoiam até mesmo candidatos com posições totalmente antagônicas ao Livro Verde da Coligação.
Fonte: IHU On-Line