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Miguel Krigsner: O melhor presente do meu avô

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O fundador do Grupo Boticário fala de ensinamentos fundamentais sobre generosidade na condução dos negócios

Quando eu era criança, lá pelos idos dos anos 1950, morávamos  em uma casa modesta. Ainda que pequena, a casa era mais estruturada do que a vizinhança: o entorno era um conjunto de residências muito simples e pobres. Todo final de ano, meu avô — um homem muito sensível — comprava doces, balas e outras tantas lembranças miúdas. Sem me dar muitas explicações, me vestia de Papai Noel e, juntos, saíamos pelo bairro, distribuindo esses pequenos presentes entre a garotada alvoroçada.

Ainda que seja uma tradição cristã, o Natal celebrado pelo meu avô me ajudou a aprender um importante ensinamento judaico: o tzedacá. A palavra é, muitas vezes, erroneamente entendida como “caridade”. Não se trata disso. Tzedacá é o sentimento de satisfação provocado por uma boa ação. É a noção de que, ao fazer o bem a alguém, quem se beneficia é você.

Miguel Krigsner é fundador do Grupo Boticário e da Fundação Grupo Boticário e quer um mundo melhor para seus netos

Levo esse ensinamento por toda a vida, e o aplico à condução dos meus negócios no Grupo Boticário. Foi ele que orientou, por exemplo, a decisão de destinar 1% das receitas do grupo à manutenção da Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza — que, por sua vez, direciona esses recursos a projetos socioambientais e pesquisas científicas. Foi por isso que criamos a maior fundação empresarial de conservação ambiental do Brasil.

Lembrei do tzedacá recentemente, quando vi uma das conclusões da Business Roundtable, uma associação sediada em Washington que reúne os diretores executivos das maiores empresas americanas. Depois de deliberações entre os executivos dessas grandes empresas, a Business Roundtable emitiu uma nota, no final de agosto, com uma sinalização importante e, para alguns, até surpreendente. Nela, os executivos declaram que suas empresas deveriam “perseguir o bem maior”. Segundo eles, os objetivos dessas grandes corporações deveriam incluir melhores práticas socioambientais, que beneficiassem funcionários, consumidores, comunidades locais e o meio-ambiente de maneira geral. Em outras palavras, segundo a nota, gerar lucro para os acionistas não deveria ser a razão única da existência dessas companhias.

As reações à nota foram diversas. Admito que parece mesmo uma inversão de valores — ou uma promessa boa demais para ser verdade.  Mas vejo nas conclusões desses executivos somente um passo lógico.

A chamada “primazia do acionista” orientou o trabalho das empresas ao longos dos últimos séculos. No século XX, ela foi defendida por economistas brilhantes, como o americano Milton Friedman. Sua lógica é cristalina (ou parecia ser): segundo ela, cabia às empresas gerar empregos e lucro. Em posse desses rendimentos, os acionistas poderiam se dedicar às boas ações que julgassem mais adequadas.

Essa lógica oferecia uma série de benefícios. De saída, deixava claro a quem as empresas deveriam prestar contas: aos seus investidores, que ganham ou perdem dinheiro conforme o negócio é bem ou mal conduzido. Adicionalmente, trazia a vantagem de diminuir a carga de responsabilidade social e ambiental que recaía sobre as companhias. Elas eram obrigadas a atuar dentro das regras do jogo, respeitando as leis trabalhistas e a legislação ambiental. A elas, cabia não fazer o mal. E só.

O resultado disso foi que, durante muito tempo, a resolução dos problemas relacionados às comunidades no  entorno de uma empresa ficou a cargo dos governos. As pessoas esperavam que o Estado resolvesse a grande maioria dos problemas de uma sociedade. Essa lógica está ultrapassada.

Hoje, vivemos uma crise ambiental que se agrava. Em todo o mundo, milhões de pessoas vivem abaixo da linha da miséria. Sozinhos, os governos não vão conseguir apresentar respostas a esses desafios. Diante desse mundo cada vez mais complexo, faz sentido que a razão de ser de uma empresa vá além de comprar e vender de maneira eficiente e lucrativa. As empresas privadas são grandes centralizadoras de interesses. Elas interferem na vida de seus funcionários, consumidores e comunidades. É importante que abracem responsabilidades relacionadas a todos esses atores. De modo a criar ambientes mais sustentáveis, do ponto de vista ambiental e também social. De modo a criar sociedades mais justas.

Não se trata de uma boa ação. É algo essencial para a sobrevivência dessas companhias. Ao assumir responsabilidades pela vida em seu entorno, elas garantirão a continuidade do próprio negócio. Serão premiadas pelos consumidores, que vão preferir comprar de empresas que fazem o bem. E poderão contribuir para evitar um colapso ambiental, uma ameaça a cada dia mais palpável. Ao distribuir presentes para as crianças, meu avô e eu fazíamos mais que um ato de caridade. Aquele pequeno gesto nos enriquecia. E eu, pessoalmente, me divertia muito. A vizinhança, da qual fazíamos parte, se tornava mais feliz. Por um breve instante, a vida melhorava para todos. É assim a vida em comunidade. Vale para pessoas. E vale também para grandes corporações.

 

 

 

Fonte: Exame 13.12.19

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