Será que a maquiagem masculina vai vencer a resistência?
David Beckham estampou a capa da edição de janeiro da revista Love, usando um terno Dior, assinado pelo estilista Kim Jones, que deixava à mostra a tatuagem de rosas e pássaros verdes em seu pescoço.
“Com aquela iluminação e pose, David me lembrou David Sylvian, da banda Japan (dos anos 1970 e 1980)”, diz a maquiadora Miranda Joyce, que participou da sessão de fotos.
“Parecia natural passar maquiagem nos olhos dele, como o azul brilhante que Bowie usou no clipe de Life onMars. Eu sabia que poderia funcionar com David, mesmo não sendo algo que ele tivesse feito antes.”
É sem dúvida um belo retrato – no entanto, o que mais chamou a atenção e despertou comentários foi a sombra verde do astro.
Os homens não são estranhos à maquiagem. Alexandre, o Grande, adorava, enquanto os pictos (antigos habitantes da Escócia) pintavam o rosto de azul para lutar. Perucas e pintas falsas eram moda na corte do rei Luís 13 – sem contar com os dândis (estilo masculino que surgiu no século 18 inspirado na excentricidade e elegância).
Mas em algum momento no século 19, alguém decidiu que “homens de verdade” não usam maquiagem e, desde então, quando usam é no intuito de transgredir. Bowie, Prince e Johnny Depp não estavam tentando (apenas) melhorar a aparência, estavam desafiando tudo o que sabíamos sobre gênero, sexo e sociedade.
Mas, fora a capa da revista Love, será que a maquiagem masculina está prestes a se tornar tendência? Afinal, a publicação apresenta um dos rostos mais famosos da atualidade usando maquiagem.
Considere as linhas de produtos masculinos lançadas pelas grifes Chanel e Tom Ford, e os maquiadores Manny Gutierrez e James Charles sendo escolhidos como garotos-propaganda das marcas americanas Maybelline e Covergirl, respectivamente – e você verá todos os indícios do início de um movimento.
Além disso, Gutierrez e Charles fazem parte de um poderoso grupo de influenciadores digitais homens que dão dicas de maquiagem, incluindo Jeffree Star, entre outros.
Em janeiro de 2019, quando Charles visitou Birmingham, no Reino Unido, para lançar uma paleta de sombras em parceria com a Morphe, ele literalmente parou o trânsito. Fora a gritaria, no entanto, o status quo quase não mudou.
A Boythe Chanel, primeira linha de maquiagem masculina da grife, é uma coleção reduzida de apenas três produtos – base, protetor labial e lápis de sobrancelha – em embalagens sóbrias que dificilmente desafiam as noções convencionais de masculinidade.
E quem são esses rapazes que usam maquiagem? Em sua maioria, são lindos, gays e propensos a extravagâncias – até 80% da sua base de milhares de fãs são compostas por mulheres jovens.
Mas por que os homens ainda são tão resistentes à ideia de se maquiar?
“Foi o que disseram para eles serem”, diz GlenJankowski, professor da faculdade de Ciências Sociais da Leeds Beckett University, no Reino Unido.”Apesar do suposto aumento de homens metrossexuais, as normas de gênero ainda são fortes para os homens. Análises de brinquedos comercializados para meninos, por exemplo, mostram que as mensagens devem ser fortes, corajosas e não é preciso investir na aparência. Para as meninas, a beleza é fundamental”, explica.
Entender essa divisão foi um choque para o maquiador transgênero Joseph Harwood.”Eu era o garotinho que usava canetas coloridas de glitter”, lembra.”E só entendi o quão forte o condicionamento poderia ser quando as pessoas que me confundiam com mulher me contaram o que havia de errado com a minha pele. Ficou evidente que havia expectativas diferentes para meninos e meninas – e eu não me encaixava nelas.”
“Os homens são frequentemente elogiados pelas imperfeições; um nariz quebrado é viril, a pele ressecada está castigada pela guerra, (mas) há uma verdadeira campanha desenvolvida desde cedo para as meninas que se baseia em fotografias de revista excessivamente retocadas”, completa. Atualmente, Harwood empresta seu rosto à marca de maquiagem vegana e unissex JeccaBlac.
Mas se os homens ainda não estão prontos para usar blush, eles estão definitivamente dispostos a se cuidar mais. A indústria de cosméticos masculinos, avaliada em US$ 57,7 bilhões em 2017, está crescendo exponencialmente. De acordo com a consultoria ResearchandMarkets, esse mercado deve atingir US$ 78,6 bilhões até 2023. E não estamos falando apenas de creme Nivea. Estamos falando de bases hidratantes e bronzeadores, corretivos e delineadores de sobrancelhas – cosméticos propriamente ditos.
Alex Dalley não se surpreende. Ele criou a marca masculina de maquiagem MMUK em 2012, depois de uma adolescência atormentada pela acne – até que a mãe colocou um pouco de base no rosto dele.”No início, tínhamos oito ou nove produtos e as coisas mais ousadas eram um gel para sobrancelha e um corretivo. Mas, ao longo dos anos, os clientes começaram a pedir bases e bronzeadores”, revela.Hoje, a marca conta com uma linha de 60 produtos e é revendida pela Asos.”É um cenário completamente diferente”, diz Dalley.
Daniel Gray lançou sua marca de maquiagem para homens orgulhosamente vegana, livre de crueldade animal e fabricada na Grã-Bretanha há quase dois anos.”Começamos a vender online em 1º de novembro e já estou contratando mais funcionários. Há um mercado enorme, e parece que deve crescer”, avalia.
“O que queremos que os homens percebam é que quando você diz maquiagem, não se trata apenas de batom vermelho. Maquiagem é passar uma boa base para ter um tom de pele uniforme e se sentir bem.”
Mas será que os homens querem realmente ficar escravos da maquiagem? Como a maioria das mulheres pode testemunhar, a rotina diária para não sair de cara lavada pode ser uma faca de dois gumes. Por um lado, você se sente confiante de estar impecável; por outro, sabe que não é sua imagem verdadeira.
Em artigo publicado recentemente no jornal britânico The Independent, a ativista feminista Julie Bindel destaca que “15% das mulheres heterossexuais entrevistadas sobre seus rituais de beleza revelaram passar maquiagem antes do parceiro acordar”. Uma obrigação e tanto.
Ao longo da vida, as mulheres no Reino Unido gastam uma média de 474 dias passando maquiagem, período em que aplicam até 200 produtos químicos sintéticos no rosto e desembolsam cerca de 9.525 libras, para acompanhar as tendências.
“A maquiagem se tornou uma necessidade para muitas mulheres, algo que elas não se sentem confiantes sem”, admite Miranda Joyce.”Eu realmente gostaria que a maquiagem pudesse ser vista como um dispositivo mais libertador, lúdico e expressivo. Se a perspectiva mudar, talvez os homens se sintam mais inclinados a experimentar”, opina.
“A masculinidade ainda é um conceito tão frágil. O fato de Beckham usar delineador ser notícia mostra como poucas coisas mudaram”, diz o ativista LGBT Jeffrey Ingold.”As taxas de suicídio entre homens jovens são alarmantes e parte da [razão para isso] é a cultura da masculinidade tóxica que restringe o que é aceitável para os homens fazerem. Não sentir que você pode ser você mesmo é incrivelmente prejudicial para o bem-estar mental de alguém.”
Ver mais homens fazendo experimentos com a aparência, usando maquiagem, seria um sinal de que estamos expandindo a ideia de “o que significa ser homem”, diz Ingold.
Joyce concorda: “Embora a fluidez de gênero esteja no centro das atenções, ainda somos uma sociedade patriarcal. Beckham usando maquiagem representa uma certa libertação da norma; ele é atleta, homem de negócios e ícone de estilo; e, na capa da revista, acho que personifica a masculinidade moderna, confiante em sair da sua zona de conforto e experimentar”.
Fonte: Época Negócios 04.04.2019