Ainda não há consenso científico sobre filtros solares e o câncer de pele
A campanha pelo uso de protetor solar ganhou força nos últimos 30 anos e mobilizou a comunidade médica de dezenas de países. Além de evitar queimaduras solares e o surgimento de manchas cutâneas, o produto é recomendado por dermatologistas na prevenção do câncer de pele.
Embora ele seja a melhor forma de evitar certos tipos da doença, sua real eficácia ainda é debatida pela comunidade científica.
Especialistas não determinaram qual a quantidade e a frequência ideais para usá-lo. Em relação à segurança, também não há consenso sobre a formulação mais adequada, a mais segura para o organismo – já que os componentes são absorvidos pela pele – e a composição menos poluente ao meio ambiente.
A discussão segue em meio à disseminação de notícias falsas sobre supostos riscos ao usá-lo, um problema a mais a desafiar os órgãos de saúde pública.
O alerta dos EUA e as notícias falsas
No fim de maio de 2019, a Sociedade Brasileira de Dermatologia divulgou nota rebatendo uma avalanche de notícias falsas sobre o potencial tóxico no uso de filtros solares.
Os rumores foram provocados pela divulgação de um estudo organizado pela Food and Drug Administration (FDA), agência ligada ao governo americano que regulamenta a indústria farmacêutica e de alimentos.
Nele, os cientistas analisaram o plasma sanguíneo de 24 pessoas, usuárias frequentes de quatro marcas comerciais de protetor solar. O exame detectou presença considerável, bem acima dos níveis considerados saudáveis, de quatro ingredientes ativos: avobenzona, octocrileno, ecamsule e oxibenzona.
Os autores do artigo ainda não sabem o que o achado representa – a absorção dessas substâncias era comum e esperada. Entretanto, no documento, a FDA recomendou que a comunidade científica conduzisse testes adicionais para entender as consequências disso.
A orientação do órgão foi suficiente para gerar um sinal de alerta e provocar um efeito cascata de notícias falsas, disseminadas pelas redes sociais, sobre o perigo de usar filtro solar, em vários países e também no Brasil.
Na resposta, a Sociedade Brasileira de Dermatologia afirmou que acompanha atentamente o resultado dos estudos com filtros solares e que a pesquisa tocada pela FDA não altera, por ora, as recomendações de uso dos filtros solares registrados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), agência equivalente à FDA no Brasil.
Ressaltou ainda que o experimento da FDA foi realizado com aplicações de grandes quantidades de filtro solar, em 75% da superfície da pele, e reaplicações quatro vezes ao dia, por quatro dias.
A oxibenzona, por exemplo, tem sido cada vez menos usada nos protetores fabricados no Brasil.
Apesar do esclarecimento do órgão, o debate sobre o uso de protetores solares não deve esfriar tão cedo. Segundo a própria comunidade científica, o “uso cotidiano de filtros solares” está longe do ideal. A recomendação é que se aplique mais protetor e mais vezes ao dia. Significa dizer que o experimento replica o uso mais indicado pelos médicos para os filtros solares.
Além desse impasse, outro artigo científico, publicado no periódico acadêmico Journal of the American Academy of Dermatology, em fevereiro, questionou o real efeito do uso de filtro solar na redução dos casos de câncer de pele nos Estados Unidos.
O que a pesquisa concluiu
Na análise conduzida por Reid A. Waldman e Jane M. Grant-Kels, do Departamento de Dermatologia da Universidade de Connecticut, nos Estados Unidos, os autores esclarecem que, apesar de protetores solares serem recomendados com vigor pela comunidade médica americana, apenas quatro estudos foram feitos nos últimos 40 anos sobre o tema, e nenhum deles investigou a fundo a eficácia do produto em indivíduos saudáveis.
A pesquisa encontrou, sim, evidências sólidas de que o protetor solar previne o carcinoma de células escamosas. Entretanto, não há prova de que ocorra o mesmo com os carcinomas basocelulares, que são a forma mais comum de câncer de pele, provavelmente porque esses cânceres se desenvolvem muito devagar para que os estudos detectem uma tendência de queda.
O único estudo que investigou o uso de filtro solar para evitar melanoma, a forma mais agressiva de câncer de pele, não obteve resultado satisfatório.
Indivíduos que usaram protetor solar diariamente, ao longo de quatro anos, tiveram 1,5% de chance de desenvolver melanoma dez anos depois, comparado a 3%, entre pessoas que não aplicavam protetor solar com frequência ou do modo correto. Para os autores do artigo, a redução não tem significado estatístico.
Ouvido pela BBC News Brasil, o dermatologista Sérgio Schalka, referência nacional em fotoproteção, afirma que há um problema nos protetores solares americanos, o que pode explicar em parte a dificuldade de determinar a eficácia dos filtros fabricados ali. Schalka diz que o desafio, agora, é conduzir estudos de longo prazo para estabelecer de fato o que faz um protetor solar.
“É complexo, porque precisamos ter sempre um grupo controle, que nesse caso não pode ficar sem usar nada de filtro solar por causa dos riscos, seria antiético. Só a Austrália fez algo massivo, com uma pesquisa conduzida por Adele Green. É o estudo mais importante que temos, envolveu milhares de pessoas. E ele comprova a eficácia dos protetores solares australianos: entre a população que fazia uso constante de filtro solar, o número de casos de melanoma caiu pela metade.”
Jade Cury Martins, coordenadora do departamento de Oncologia da Sociedade Brasileira de Dermatologia, afirma que tanto o estudo da FDA quanto o dos dermatologistas da Universidade de Connecticut fazem uma crítica adequada às metodologias usadas nos estudos anteriores, dentro da realidade americana.
“É verdade que ainda existem controvérsias sobre o uso do protetor solar. Uma delas é exatamente sobre a absorção das substâncias pela pele, e se isso teria algum impacto ou toxicidade para nosso organismo. Outra controvérsia seria o efeito hormonal do uso frequente de protetores. A questão da vitamina D também é muito debatida pelos médicos: usar filtro solar reduz a síntese da substância, que é fundamental na absorção de cálcio pelo organismo e na formação e recuperação de tecido ósseo. Nesse último caso, temos a opção de receitar vitamina D quando há deficiência, mas todas as questões que descrevi permanecem em aberto”, afirma a especialista.
Martins argumenta que o câncer é uma doença multifatorial e complexa, “mas é importante dizer que o estudo sobre a eficácia conclui de modo muito assertivo que o uso de protetor solar deve ser encorajado, apesar da carência de evidências. Estudos prospectivos de longo prazo são sempre necessários”.
Fonte: G1 28.07.19