Como as Kardashians mudaram a maneira como vemos a beleza (para melhor ou pior)
Nos livros didáticos de beleza do futuro, a década de 2010 será acompanhada pelos rostos do clã Kardashian-Jenner, que mais de uma vez foi chamado de “família real da América”. As Kardashians estão tão envolvidas no modo como consumimos cultura e beleza.
Você sabe como elas são, mesmo que nunca tenha assistido a um episódio do reality Keeping Up With The Kardashians ou visto seus feeds no Instagram. Você vê os aspectos estéticos delas replicados em inúmeros rostos ao redor do mundo: a sobrancelha arqueada e moldada; o contorno do pó translúcido; o brilho interno que surge do corretivo cuidadosamente delineado; o gradiente do lápis de lábios neutro, exagerado cuidadosamente, finalizado com um gloss marrom transparente.
Na maior parte da última década, os maquiadores foram inundados com pedidos desses efeitos e muito mais. Nos livros didáticos de beleza do futuro, a década de 2010 será acompanhada pelos rostos do clã Kardashian-Jenner, que mais de uma vez foi chamado de “família real da América” . As Kardashians estão tão envolvidas no modo como consumimos cultura que “Kim Kardashian” aparece como um exemplo de termo de pesquisa no Google Trends, sugerindo que quando uma pessoa recebe a possibilidade de adquirir conhecimentos infinitos, ela pode primeiro se perguntar o que Kim está fazendo.
Quando houve a estreia de Keep Up With the Kardashians em 2007, talvez fosse possível simplesmente assistir às Kardashians, uma família vagando pela vida americana colada em Hollywood na rede de entretenimento E!. Treze anos de conteúdo denso depois, é mais provável que você tenha entregado a elas seu dinheiro, bem como sua ira, seu desprezo, sua admiração, seu amor sem culpa.
O que você acha da influência delas pode ser o que você pensa sobre classe e raça na América. A Brunel University London realizou seu próprio “Kimpósio” intelectual para avaliar o impacto da famosa família na cultura pop do mundo todo. Lauren Michele Jackson, autora do livro “White Negroes”, descreve Kim como representante do discurso racial americano. Se Kim é boa em alguma coisa, ela postula, é em “metacrose” ou o poder de alguns animais de mudar de cor voluntariamente. “A distância de Kim da branquitude, por mais relativa que seja, transformou-a numa pessoa de interesse e repulsa – isto é, uma pessoa desejável”, escreve ela. “A fama particular de Kim deriva de um lugar querido na imaginação racial americana que, combinado com riqueza, impede o contato com os efeitos mortais da cor negra neste país, enquanto colhe o exotismo da não total branquitude.”
Em uma foto, Kim pode parecer a pálida da Califórnia, com cabelo loiro-platinado e pesados óculos escuros pretos. Em outra, ela está bronzeada o suficiente para ser acusada de blackface e ter que lidar com isso na série. E depois ela usa tranças Fulani, atribui o estilo a uma mulher branca, e o ciclo de inimizade e de celebridade continua.
Durante o reinado de Kardashian, um novo termo foi cunhado para descrever o fenômeno repentinamente crescente do desempenho racial nas redes sociais: “blackfishing” (pesca negra). Decorrente da prática racista do “blackface”, o “blackfishing” descreve especificamente quando as pessoas usam ferramentas como maquiagem, Photoshop e cirurgia estética que as tornam mais pretas. O termo foi cunhado pela escritora cultural Wanna Thompson que, em 2018, iniciou uma thread viral no Twitter de “garotas brancas fazendo cosplay de mulheres negras no Instagram”. A thread foi retuítada quase 30.000 vezes; as respostas estavam cheias de sósias das Kardashians. Em uma entrevista discutindo o termo e aqueles que participam dele, a influenciadora do Instagram Ericka Hart explicou como a popularidade avassaladora das Kardashians “não pode ser esquecida. Elas foram capazes de tirar proveito de corpos negros e as pessoas vão querer imitar isso.”
É difícil desvendar o quanto da influência das Kardashians tem a ver com o sucesso pessoal delas, e quanto disso tem a ver com ver uma pessoa de alto perfil promover a fetichização da negritude na América. Você não pode considerar o impacto delas sem analisar como elas se envolvem em conversas públicas sobre seus próprios corpos e raça, e como transformam essa conversa em um fluxo lucrativo – tornando-a um momento de virada na sua série e nos produtos em suas linhas de beleza (que incluem, até o momento, a KKW Beauty e a Kylie Cosmetics; a Khroma Beauty não está mais conosco). As séries sobre transformações estilísticas têm sido o ganha-pão da televisão por décadas, mas Keeping Up With the Kardashians trouxe a narrativa do “auto aperfeiçoamento” para o âmbito daquilo já é famoso, que já é belo. Se isso não estivesse à altura de padrões particulares no início de algum episódio, então, de maneira transparente, publicamente, a família exagerava em algo adicional no final dele, sem barreiras orçamentárias que evitassem superar obstáculos estéticos.
A influência dessa família pode ser traçada nas tendências de cirurgia plástica, nas categorias de produtos de beleza, nas vendas de revistas e nas discussões acadêmicas. Quando Kim “abalou” a internet em 2014 ao recriar uma polêmica foto de Jean-Paul Goude para a capa da revista Paper (a assinatura de Goude envolve aumentar as dimensões de seus temas para proporções mais “exóticas”), a obsessão por sua bunda tornou-se inextricavelmente ligada ao crescente interesse do consumidor em lifting de glúteos. De acordo com a American Society of Plastic Surgeons, entre 2000 e 2018, esses procedimentos aumentaram em 256%.
A jornada da beleza de suas irmãs mais novas também se tornou um modelo de aspiração – um de ser uma top model, outro de ser uma executiva de beleza – e objetos de crítica a respeito de idade e proximidade com procedimentos cosméticos. Um estudo publicado na Aesthetic Plastic Surgery em 2019 que analisou dados de pesquisa para procedimentos específicos em comparação com notícias de celebridades relevantes descobriu haver um grande interesse em preenchedores labiais, implantes labiais, injeções labiais, aprimoramentos de nádegas e implantes de nádegas. Um exemplo: após a confissão de Kylie Jenner, então com 17 anos, sobre ter feito aumento labial em 2015, as pesquisas por “preenchedores labiais” aumentaram em 3.233%.
O clã Kardashian adotou a rede social desde seu início como mais um meio efetivo de nos atualizarmos com elas. E há evidências de que elas plantaram as sementes da economia “influencer” que agora vale bilhões de dólares, apenas para colhê-las com retornos cada vez maiores. Mas talvez seja um melhor argumento ver a família como sua própria megacorporação, firmemente engajada na batalha pelos olhos e pelas carteiras americanas. Quando elas mencionam o nome de um produto em uma entrevista, o estoque desaparece. Se o produto saiu de linha, como no caso da base Face Fabric de Giorgio Armani, ele coincidentemente ressurge das cinzas depois de dizerem à imprensa que as Kardashians supostamente têm 20 garrafas do produto em estoque. Enquanto os salários astronômicos associados às colaborações delas chegam às manchetes — supostamente, uma postagem na rede social pode render-lhes seis dígitos — muito menos se sabe quais são essas postagens. Elas têm influência e transparência seletiva, e a polêmica em torno de sua transparência lhes dá ainda mais valor na mídia do que anteriormente.
Foi inevitável o fato de cada membro da família começar a vender o que as pessoas mais queriam delas: os contornos de Kim, os lábios de Kylie, as curvas de jeans de Khloé, o regime de vitaminas de Kourtney. A matriarca delas, Kris, tem sido usada como uma abreviatura contemporânea para descrever alguém cujo estilo corporativo é superlativamente implacável. “O diabo trabalha bastante”, dizem, “mas Kris Jenner trabalha muito mais.” Ainda assim, para uma empresa crescer, ela deve se diversificar (por assim dizer). Os episódios finais de Keeping Up irão ao ar em 2021, deixando uma marca considerável em seu império midiático quando tudo acabar. As questões do futuro delas continuam: o que elas construirão? O que eles irão expoliar? E o mais notável: as massas continuarão a se importar?
Fonte: Glamour 05.05.2021