100% Sintético: Novo L’Heure Perdue XI de Les Heures de Cartier
Poucos tabus são mais persistentes na perfumaria comercial do que admitir que uma fragrância é composta unicamente por materiais de origem sintética, ou seja, feiros pelo homem, em vez de extraídos da natureza. A direção oposta é cada vez mais louvada como a renascença da perfumaria, mas como eu própria tenho veiculado, por vezes isso passa nos media como sendo mais papista do que o Papa, o que prejudica os criadores de perfumaria natural.
O perfume, e o prazer estético dele derivado, não deve ser baseado numa suposta aversão ao risco, tal como uma escapada sensual não deveria iniciar com a afirmação de produzir benefícios higiénicos. Aproveitar o puro prazer deve vir com a promessa de apreciar as coisas por aquilo que elas são, pegando no hedonismo e desfrutando dele. Os perfumistas naturais há muito defendem que sua opção é estética e eu os respeito por isso. Da mesma forma que tenho respeito pelos projetos e pelos perfumistas que admitem explorar unicamente moléculas sintéticas que apresentam sua própria beleza, e uma aposta em termos estéticos.
O fato de estes últimos não serem tão bem recebidos, pelo menos em teoria, se o tremendo culto de Molecule 01 é algum indicador, é testemunho de nossa apreensão em relação à mania da perfumaria do último século; que o perfume é poderoso porque depende das qualidades mágicas da natureza.
Mathilde Laurent, perfumista formada no ISIPCA responsável por alguns dos mais respeitados perfumes modernos da Guerlain (mesmo quando não oficialmente creditada) quando estava a estudar com Jean-Paul Guerlain e antes da chegada de Thierry Wasser, é um talento criativo que brilha com sua própria luz. Ela nunca teve medo de marcar suas criações com sua chama única, sua patte como dizem os franceses. Desde a inspirada patchoulização de toranja em Pamplelune até Shalimar Legere, indo até às esquivas mas bel+issimas ameixas e violetas cozinhadas em brandy de Attrape Coeur (antes Guet Apens). Sua residência na Cartier tem sido cem sucedida: vejamos Baiser Volé (2011), seus dois flankers de Declaration, e La Panthère (2014) que eu resenhei, embora tenha sido uma tarefa difícil comparar com o vintage e oferecendo ao mesmo tempo uma versão moderna.
Les Heures de Cartier, uma linha “exclusiva de boutique”, prestigiosamente apresentada no 5 Rue de la Paix, em Paris, tem explorado avenidas nunca antes exploradas tais como o cheiro de cavalo, nos desafios La Treizième Heure e L’Heure Mystérieuse, desde sua conceção em 2005 quando Laurent se juntou à Cartier. A última edição, L’Heure Perdue (na verdade La Onzième Heure, ou seja. a Décima Primeira Hora apesar de a sequëncia cronológica o marcar como o 14º lançamento) é uma cifra de perfumófilo.
Ao contrário de todas as modas atuais de perfumes L’Heure Perdue XI de Cartier não contém uma única nota floral ou gourmand. Esta colisão rebelde vem colocada numa metáfora em reverso: ao invés de oferecer uma composição arcaica de notas pesadas, densas, como faz o resto das linhas de nicho, ládano, resinas, incensos ou essências animálicas, para atrair os Salteadores da Arca Perdida, Mathilde Laurent segue no Futurama de fortes notas sintéticas. Laurent confia: “A beleza não reside apenas na natureza. Sem os sintéticos nenhuma das grandes obras-primas da perfumaria moderna teria sido possível. Eu quis zerar os princípios da criação olfativa.”
Para isso, Laurent explorou as várias facetas de celebrados elementos da química analítica: cumarina, vanilina, Calone etc. Ela poliu seus efeitos para conseguir inspiração para uma fragrância que mesmo sendo totalmente sintética por natureza não tem cheiro de químicos em sua aura. Um perfume voluptuouso, carnal, suave e sedoso pode ser conseguido através da alusão à química? Eppur si muove porque pensar fora da caixa pose ser um jogo de alusões para a pessoa que cheira tal como para quem compõe.
Não existe um limite claro, não tem princípio nem fim, apenas uma suave e envolvente carícia que revela quanto a nossa perceção é influenciada por aquilo que sabemos em vez daquilo que é apreendido pelos nossos sentidos.
Apesar de os leitores mais desconfiados duvidarem da afirmação da ausência de notas gourmand ao verem vanilina nas moléculas usadas molecules, basta dizer que leva um toque aldeídico reminiscente não de bolachas e prazeres caseiros da cozinha e do banho, mas de bolhas brancas de luz que cheiram estranhamente familiares apesar de seu aspeto descontextualizado.
O novo L’Heure de Cartier, L’Heure Perdue XI, está disponível nas boutiques oficiais Cartier nos familiares frascos de culunas arquitetônicas com números em numeração romana, dentro das caixas vermelhas que já conhecemos.
Fonte: Fragrantica