Como as marcas usam os sentidos do cliente para criar cosméticos
Testes sensoriais ajudam empresas a medir chance de êxito comercial de inovações
Nos centros de inovação, testes sensoriais têm ajudado empresas a criar cosméticos e a medir chance de êxito comercial. O BotiLabs, do Grupo Boticário, localizado em São José dos Pinhais (Paraná), por exemplo, desenvolve também produtos que passaram da ideia à prática, como o espelho virtual que mostra o resultado da maquiagem.
Foi pelo WhatsApp que a estudante Maria Luiza Cordovil, de 19 anos, recebeu uma proposta inusitada: ir ao centro de inovação da francesa L’Oréal, em um canto tranquilo do câmpus da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), para falar de hábitos relativos aos cabelos crespos. A foto do perfil da jovem foi o “gatilho” para o convite. Isso porque, hoje, alisar o cabelo caiu de moda. A ordem é assumir os cachos. Para desenvolver novos produtos que estejam em sintonia com o que o consumidor quer, as empresas de bens de consumo precisam trazer para os laboratórios o conhecimento das ruas.
O prédio futurista que abriga o centro da L’Oréal não tem só laboratórios em que trabalham 300 cientistas, mas também uma ala dedicada a experiências “sensoriais”. Além de um salão de beleza para testar produtos, há chuveiros em que as mulheres são filmadas enquanto lavam os cabelos. Cada detalhe é observado, diz Juliana Battochio Farias, diretora de avaliação de produtos da gigante francesa. “Tudo conta: como o aroma se ‘espalha’ pelo box, a quantidade de espuma e o resultado prático do produto.”
Em protetores solares e desodorantes, a multinacional faz “testes de estresse”: grupos de consumidores passam horas em uma sauna quente – assim, descobre-se se o resultado prometido se mantém em situação extrema. Na hora de testar odores de xampus e cremes, a arma não é radicalizar, mas evitar que um sentido “contamine” o outro. Por isso, os voluntários são posicionados em salas com iluminação especial, avermelhada. Assim, não são influenciados pelo aspecto do produto.
É por esse contato com o consumidor que a L’Oréal conseguiu trazer inovações locais a produtos globais. No Brasil, criou um produto que, ao ser misturado ao protetor solar, dá ao creme uma cor próxima aos tons dos diferentes tipos de pele dos brasileiros. Ao todo, existem oito tons de pele no mundo – e o Brasil é o único país em que todos estão representados.
O mesmo acontece com os cabelos – são 66 variações, segundo os pesquisadores da L’Oréal. E, no Brasil, nada menos do que 55 estão representados – outro recorde global. Logo, as fórmulas usadas por aqui precisam ser específicas. É mais difícil acertar. Isso porque, além das variações naturais, fatores como tingimento, idade e exposição ao sol também influenciam o aspecto dos cabelos.
Por esse motivo, profissionais como Déborah Volpe, que é responsável pelo desenvolvimento de fragrâncias de cabelos, passam o dia lavando, penteando e comparando resultados de produtos em uma grande variedade de mechas. “A brasileira está disposta a investir em beleza, mas é muito exigente em relação a resultados. Em média, cada mulher usa cinco produtos diferentes no cabelo”, diz a diretora de avaliação da L’Oréal.
Infinidade de dados
Com base nos dados coletados com consumidores, o Grupo Boticário identifica não apenas tendências de produtos, mas também organiza o que deve ser colocado nas lojas de forma mais urgente. Essa busca por novidades é importante, uma vez que a fabricante paranaense trocou 37% de seu portfólio de produtos nos últimos dois anos.
Um dos veios atuais de inovação, diz Paulo Roserio, diretor de pesquisa e desenvolvimento do grupo, é a busca por produtos para ambos os sexos – ou “genderless”. Recentemente, O Boticário desenvolveu o Egeo, primeiro perfume elaborado por inteligência artificial, que já seguiu essa lógica.
Pele de laboratório. Outro desafio das grandes empresas de bens de consumo é responder à pressão de entregar novidades sem risco à saúde do consumidor. E é necessário fazer isso sem testes em animais – prática abolida tanto no Boticário quanto na L’Oréal e na Natura, também visitadas pelas reportagem.
A gigante francesa criou um negócio separado, a Episkin – pequenos tecidos de pele desenvolvidos em laboratório. A tecnologia é usada internamente e também vendida a concorrentes. No Boticário, os testes são feitos em restos de pele de cirurgias plásticas.
No grupo paranaense, um centro de design foi criado para melhorar a experiência dos clientes também com embalagens. Nesse espaço, a empresa usa uma impressora 3D que pode produzir uma representação de um frasco de perfume em questão de minutos. Para “polir” o aspecto do que a tecnologia produz, os profissionais da área completam o trabalho com ferramentas manuais – alicates, lixas e furadeiras. Caso o resultado não agrade, uma nova opção pode ser confeccionada.
O BotiLabs, centro de inovação do grupo, também desenvolve soluções para as 4 mil lojas do conglomerado. Entre os produtos que passaram da ideia à prática estão um espelho virtual que mostra o resultado da maquiagem e um sistema de coleta de embalagens usadas para a marca Quem Disse, Berenice?.
Nos dois casos, as inovações foram criadas a custo baixo e testadas em poucas lojas antes de ganharem escala. É o que se chama de metodologia ágil, diz Renato Pedigoni, diretor de inovação digital do Grupo Boticário. “Temos cem vagas de desenvolvedores em aberto. A ideia é internalizar o desenvolvimento, construir experiências para o cliente.”
Testar e aprender
Na Natura, os testes de produtos em Cajamar envolvem não apenas consumidores, mas até alguns dos 200 cientistas que criam 250 produtos ao ano. É o que ocorre na ala de desenvolvimento de maquiagens. Três químicas que trabalham na área – Giovana Ortiz, Mayara Baradel e Tácia Lopes – são as próprias “cobaias”. “Conseguimos desenvolver uma fórmula de batom em 40 minutos”, diz Giovana. Ou seja: a maquiagem das três é retocada diversas vezes ao dia.
No momento, a Natura está reformando seu centro de inovação para agregar novas disciplinas aos produtos. Uma delas, conta a diretora de inovação da Natura, Roseli Mello, é o uso da microbiota. A ideia é entender os micro-organismos “bons” do corpo e incentivar sua proliferação – garantindo, assim, uma pele mais saudável com menos ingredientes.
Para Maximiliano Carlomagno, sócio da consultoria em inovação Innoscience, os laboratórios de bens de consumo não podem se isolar da prática. “Não dá para deixar para entender se o cliente tem interesse em determinado produto ao fim do ciclo de inovação”, diz. “Portanto, é bem plausível engajar o cliente durante o desenvolvimento. Assim, elimina-se um risco desnecessário de o produto não ter mercado.”
Fonte: Estadão 04.11.19