Especialistas discutem a continuidade da ‘beleza natural’
Em tempos de quarentena, muito se falou sobre a valorização da beleza natural das mulheres.
Foi preciso encarar o espelho sem tantos recursos disponíveis e passar a conviver com fios brancos, unhas sem esmalte, rostinho lavado, sobrancelhas desalinhadas… E não é que uma boa parcela gostou e deu voz ao movimento? Agora, após quase dois anos dominados pela pandemia da Covid, o Rio de Janeiro surfa em uma crescente flexibilização com o avanço do número de vacinados. As máscaras estão caindo (calma, tem um sentido figurado aqui… Liberadas apenas ao ar livre e, mesmo assim, todo cuidado é pouco) O ponto é: a tal aparência ‘como vim ao mundo’ vai se sustentar? Como as mulheres estão deixando a quarentena rumo ao verão carioca, estação mais sedutora do ano?
Segundo a empresa de pesquisa global Euromonitor, a volta ao “normal” está acelerando o mercado brasileiro de saúde e beleza, com expectativa de fechar o ano com crescimento em torno de 4,6%. Nos salões e consultórios dermatológicos, as agendas encheram. Recuperar o tempo perdido? A dermatologista Denise Barcelos afirma, sem titubear, que a preocupação com a aparência e a busca por tratamentos aumentaram muito. Porém, com uma percepção nítida de que há uma nova forma de se cuidar, como reflexo desse período. O excesso de preenchimento vem dando lugar a recursos bem mais voltados para viço, textura e firmeza da pele. “Arrisco dizer que a artificialidade dos rostos iguais vai finalmente ceder para a naturalidade sim.
Na minha clínica, a procura está maciça nesse contexto. As pessoas me pedem para derreter os excessos de preenchimento e cuidar verdadeiramente da qualidade da pele. Não dá mais para adiar uma beleza consistente, não adianta só empurrar poeirinha para debaixo do tapete… A pandemia trouxe, a meu ver, uma luz e mais consciência sobre a necessidade de um organismo mais saudável, que respondera muito melhor aos tratamentos para estimular colágeno. Não à toa essa procura por meditação e ioga deu um boom depois de meses de isolamento”, defende a médica.
A antropóloga Mirian Goldenberg estuda o tema e recorre, entusiasmada, à palavra “explosão” para definir o período atual. Para ela, o desprendimento dos padrões de beleza se disseminou fortemente com a pandemia. “A maior queixa das mulheres na quarentena foi a de que se sentiam sobrecarregadas, precisando dar conta de tudo e de todos. Nesse cenário, tiveram que reconhecer prioridades e deixaram um pouco de lado os rituais de beleza. Por outro lado, foi libertador! Muitas já queriam assumir cabelos brancos, por exemplo, mas não conseguiam porque há 15 anos, isso era raríssimo, visto como desleixo. Agora, o maravilhoso é ter modificado algo que era desviante, considerado feio. Não é só aceitar, é enxergar como bonito. Mudou o olhar. E o importante não são quantas mulheres já se libertaram, mas como… Estão militando!”, comemora Mirian.
A antropóloga traça uma relação com sua tese de doutorado sobre Leila Diniz como a protagonista de uma revolução, causada quando ela apareceu com a barriga de grávida para fora, em 1971: “Não foi apenas uma moda, representou uma libertação, e todo um contexto que mudou depois. Não dá para comparar Leila a nada, mas há algo similar acontecendo. Pode deixar a celulite aparecer, as rugas, os brancos e ser atraente, feminina. O que quero ressaltar é que esse movimento começou há muito tempo, uns 20 anos, mas agora ex-plo-diu”.
Empresa especializada em previsão de tendências de comportamento e consumo, a WSGN endossa a teoria de que algo mudou no conceito de autocuidado feminino — o que não significa o desinteresse por cremes, tintas e tratamentos. Só que existe um olhar holístico em alta, envolvendo a relação da beleza com o bem-estar mental e enaltecendo a estética natural. Seguindo essa linha, faz sentido a queda nas vendas de maquiagens enquanto as de skincare sobem. O batom até que vem esboçando reação. Com o uso de máscaras, fácil compreender por que o item ficou em baixa — um decréscimo de 29% nas vendas em 2020 (maior do que os 18% da categoria maquiagem), de acordo com a ABIHPEC (Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos).
Mas de abril para cá, a procura pelo batom começou a subir. A atenção se voltou para os olhos e as mulheres aprenderam a pintá-los, observa o cabeleireiro e maquiador Fernando Torquatto, que nota ainda que elas chegam ao salão com o desejo por uma pele leve em termos de textura e frescor. “A palavra para descrever esse momento é liberdade. Reparo um conforto maior com sua própria identidade, sem preocupação em agradar grupos. Tem muito a ver com a pandemia. Depois de experiências com a finitude, as pessoas começaram a se tratar melhor”, diz Torquatto. O cuidado agora, ele acrescenta, é para a ditadura da beleza não ter mudado de lado.
A revolução é poder ser livre, fazer escolhas — não vale transformar esse movimento em uma prisão ao contrário. “Quem se sentir bonita com cabelo branco, está ótimo. Mas quem não quiser, tudo bem. Não podem começar a ser julgadas por isso”, alerta.
A pensadora e especialista em educação Rona Hanning traz a filosofia japonesa para enriquecer a discussão. Tema de uma de suas palestras, o wabi-sabi é a estética da imperfeição, ver beleza onde normalmente se enxergam defeitos. “Tudo a ver com o que estamos vivendo. As flores secam e aparecem suas nervuras, ficam lindas. Por que temos que tapar tudo? Tem uma indústria que compreende a beleza como burlar o tempo. Esconder as marcas, cicatrizes… Nesse pós-confinamento, estamos vendo manifestações enérgicas contra isso, quebramos um padrão. Toda crise estabelece novos paradigmas. Esse movimento veio para ficar”, crava Rona.
Fonte: O Globo 14.12.2021