Mercado masculino representa cerca de um terço das transações globais da indústria
Estima-se que a moda masculina represente aproximadamente um terço das transações globais da indústria (que engloba ainda as linhas femininas e infantis), um valor próximo a US$ 2 trilhões anuais. Calcula-se ainda que a moda masculina venha crescendo cerca de 2% a cada ano, de modo regular, no mundo.
Como moda e beleza são indissociáveis, a indústria dos cosméticos também vem revelando um crescimento do consumo masculino. De acordo com a Euromonitor, que mapeia o mercado globalmente, somente no Brasil as transações no setor pularam de R$ 20,7 milhões, em 2016, para mais de R$ 24 milhões, em 2021, um aumento de 17,9%.
As saias, porém, assim como as recentes apostas em maquiagem e esmaltes masculinos – a Chanel lançou em 2018 a linha Boy de Chanel, não vendida no Brasil – são novas manifestações de como a sexualidade e as discussões de gênero permeiam historicamente as duas indústrias, sem que haja um grande impacto significativo nos negócios.
Mas o debate acerca de gênero – iniciado nos distantes anos 1960, e recentemente trazido de volta à tona, sob novas perspectivas, por estudiosos como os filósofos americanos Judith Butler e Paul B. Preciado – vem sendo considerado por consultores de tendências como o grande ponto de inflexão nestas décadas iniciais do século XXI.
Em um estudo intitulado “Masculinidade iluminada”, Paulo Henrique Escrivano, diretor de Novos Negócios da agência de tendências Spark:off, sugere que existe “uma abordagem mais fluida do que significa ser um homem hoje e amanhã” e que “traços estereotipados estão começando a parecer datados, abrindo caminho para uma abordagem e mentalidade mais sem gênero para roupas, acessórios e todo o universo da beleza”.
Neste último segmento, ele destaca a iniciativa do cantor inglês Harry Styles de criar a marca Pleasing, que tem entre seus carros-chefes os esmaltes, e cujo “objetivo é confundir fronteiras e celebrar a multiplicidade de identidades únicas em diferentes comunidades, dissipando o mito de uma existência binária”, segundo Escrivano. Na moda, ele cita novamente Styles, que em 2020 estampou a capa da “Vogue” americana usando um vestido Gucci.
Mas pondera: “Para uma marca de moda masculina tradicional, mergulhar de cabeça em vestidos e saias pode ser uma perspectiva intimidadora e ainda não comercialmente viável no sentido mainstream. Mas acessórios e detalhes femininos são pontos de entrada fáceis que já têm apelo no mercado de massa e ressoam com a geração Z além das fronteiras de gênero”.
Vitor Coelho, da consultoria de tendência de comportamento e consumo WGSN, ressalta que “o mercado brasileiro voltado para o público masculino costuma ser um pouco mais fechado do que o internacional”. Coelho, no entanto, é otimista: “os homens estão cuidando mais de si, dos outros e do planeta” e, aliado a isso, vê-se “um crescimento de mercados, como os de alimentos mais saudáveis e suplementação alimentar, entre outros”.
Na moda, o consultor acredita que bolsas já são realidade de armário de muitos homens, especialmente fora do Brasil. “Quanto às saias, ainda faltam players nacionais de massa apostarem na peça, bem como haver mais referência de homens comuns usando para de fato se tornarem massivos”, diz. Para ele, em seu início, o movimento agênero no vestuário “trouxe uma proposta de peças com caimentos” que não valorizavam homens ou mulheres.
“Mas isso já é passado. Hoje, existem marcas que se propõem a uma universalidade bastante interessante que inclui as mais diferentes expressões de gênero. Por isso, prefiro o termo ‘gender-inclusive’.” Para Coelho, a tendência se estende para além da moda e da beleza.
A bem da verdade, ao longo da história, diversas manifestações estéticas estiveram na fronteira entre o masculino e o feminino. Mas é na contemporaneidade, sobretudo a partir do fim da segunda metade do século XX, que as variações comportamentais no mercado masculino começaram a despertar a atenção dos grandes players para o seu potencial.
Em 1991, com o lançamento de “Psicopata americano”, o escritor americano Bret Easton Ellis capturou, por exemplo, a incipiente adesão masculina aos cosméticos. Em um trecho do livro, seu protagonista, Patrick Bateman, um típico yuppie (jovens profissionais urbanos, em inglês) dos anos 1980 e 1990, descreve detalhadamente seu regime diário de cuidados pessoais, de uma “uma máscara facial de hortelã” a “um hidratante (ao meu gosto, Clinique)”.
Já na virada para os anos 2000, a repaginação visual do homem ganhou um novo vocábulo – metrossexual -, uma palavra-valise que se referia ao homem das grandes metrópoles, atento à sua aparência, e cuja representação midiática mais emblemática foi o meio-campista inglês David Beckham.
Brunno Almeida Maia, pesquisador em filosofia e teoria de moda pela Unifesp, pondera que aquelas mudanças de consumo masculino nas décadas finais do século XX foram, em grande parte, tributárias de uma conjunção de influências anteriores: da contracultura, dos hippies, do punk e da comunidade gay, que questionaram os papéis de gênero também.
Para Almeida, os millennials e a geração Z, que começa agora a ser público-alvo da indústria, “impulsionaram muito o questionamento da masculinidade tóxica, e as marcas passaram a olhar para esses consumidores”, diz. “E os homens também começaram a perceber que sofreram uma violência psíquica com as convenções machistas, de não brincar de boneca ou usar rosa. Tudo está interligado aos ecos que vemos agora nas mudanças de consumo.”
O pesquisador ainda lembra o papel das redes sociais, que passaram a impor “uma ideia de vida estetizada”, em que tanto o homem quanto a mulher querem ressaltar o design, e não apenas a funcionalidade de tudo que usam, do vestuário aos acessórios. É aí que entram, por exemplo, as bolsas.
Na Montblanc, o segmento de couro passou por uma revolução: às coleções de pastas de trabalho foram sendo adicionadas bolsas de diversos tamanhos e formatos, com mais informação de moda, isto é, maior apelo estético, inclusive com a adição de cor e estampas ao predominante preto de suas peças.
O diretor da divisão de couro da maison alemã, Jean Charles Hita, faz uma linha do tempo da evolução: de início, os homens procuravam produtos exclusivamente ligados ao trabalho, como as pastas. Rapidamente, as mochilas, que eram usadas só para viajar, chegaram aos escritórios. Esses acessórios, segundo ele, passaram a acompanhar a rotina diária do homem contemporâneo, daí a necessidade de criar itens com dimensões e funcionalidades diversas.
“A tendência do home office também acelerou o interesse por formatos mais versáteis de bolsas, que você pode usar no trabalho ou após o expediente, em encontros com amigos para tomar um drinque”, exemplifica Hita. “A ideia de versatilidade se tornou importante. Queremos criar bolsas que são ideais para ocasiões diferentes, podem ser usadas com tênis ou calçados mais formais. Um de nossos best-sellers se chama 24/7 Bag, cujo nome já reflete a possibilidade de uso ao longo de todo o dia, de toda a semana. Ela pode ser carregada com a mão, no ombro, como uma mochila, como uma pasta ou mesmo uma tote.”
Outro acessório de grande apelo junto ao público masculino nos últimos anos têm sido as joias. O restaurateur goiano Renato Calixto faz uso generoso delas. Passou um período em São Paulo em que seus acessórios se limitavam aos relógios, mas, em 2016, voltou a usar joias, depois que uma namorada o presenteou com um anel. “Aí tornei a me interessar. Dos anéis, vieram as pulseiras, que voltaram a fazer parte de meu estilo.” No ano seguinte, Calixto já havia se tornado um “heavy user” dos produtos, segundo ele, e chegou a ser convidado por uma marca paulistana de joias para estrelar uma campanha.
Calixto também é adepto, há uns 20 anos, da depilação, do peito e abdômen, que faz em casa mesmo. Praticante de múltiplas modalidades de esporte ao longo dos anos, incomodava-se com a transpiração excessiva nas axilas. Foi aconselhado por uma dermatologista a fazer aplicações de botox na região, para controlar o suor. Para tanto, teria que depilá-las.
“Depois que tirei, gostei, não somente em termos estéticos, mas de bem-estar. E isso se tornou uma prática também. Após algumas aplicações, mesmo que não fosse mais necessária a retirada dos pelos, permaneci depilando as axilas e incorporei a meu regime de cuidados pessoais”, conta.
O tratamento com a toxina botulínica da hiperhidrose – o suor excessivo, das axilas às palmas das mãos, plantas dos pés e ao couro cabeludo – é um dos muitos tratamentos que os homens vêm procurando nos consultórios de dermatologia, segundo a médica Daniela Pimentel, diretora de comunicação da Sociedade Brasileira de Dermatologia no Estado de São Paulo. Nos últimos 15 anos, a procura pela especialidade aumentou e por novos motivos.
“Antigamente, os homens buscavam o consultório apenas quando tinham alguma doença de pele ou para prevenção do câncer. Hoje a procura é para se ter um envelhecimento bonito e saudável”, explica. O paciente masculino, diz ela, busca rotinas mais enxutas de cuidados, que costumam se restringir a um sabonete adequado ao tipo de pele, algum filtro solar que contenha um tipo de antioxidante para o dia, mais algum produto para noite, e pronto.
Entre os procedimentos, o botox é o número 1, para rugas em geral. Eles buscam também os preenchedores, aplicados em pontos específicos da face, na mandíbula, na região malar, no queixo, nas olheiras etc. E os fios estimuladores de colágeno, para aumentar a produção dessa proteína de sustentação da pele, que começa a decair a partir dos 25 anos.
Em tudo isso, há também um componente profissional adjacente: “Muitos desses homens querem também parecer mais jovens, até mesmo por causa do mercado de trabalho. Alguns assumem novos cargos e sentem necessidade de aparentar bem para a idade que têm, por exemplo”, explica Pimentel.
A faixa etária dos pacientes foi se estendendo e hoje vai dos 30 aos 55, sobretudo. E, embora ela considere que o aumento de atendimentos a homens seja nítido, ainda não correspondem nem a 50% do movimento diário em seu consultório.
O pacote de cuidados pessoais inclui, como se viu no caso de Renato Calixto, a depilação. Embora não faltem clínicas dedicadas especificamente ao público masculino, a indústria vem tratando de facilitar a vida de quem prefere fazê-la em casa, por praticidade ou discrição. Criadora do primeiro barbeador elétrico, em 1939, a Philips também é pioneira no mercado de multiaparadores, que eliminam dos pelos do nariz aos corporais.
Flávia Almeida, gerente de marketing da Philips Cuidados Pessoais, aponta um dado curioso nas curvas de crescimento do consumo desses aparelhos. “O maior pico ocorreu de 2019 para 2020, um aumento de 26%, contra 19% no biênio anterior. E esses dados reforçam como a pandemia impulsionou novos hábitos nos consumidores, que praticaram o autocuidado em casa, já que o isolamento social foi necessário no período”, explica.
Também para facilitar a rotina de cuidados pessoais, a indústria da beleza vem investindo constantemente em novos produtos, como a Clinique, que introduziu sua primeira linha masculina ainda em 1976, apenas oito anos depois de a marca lançar-se com a feminina.
Segundo Mariana Seta, diretora de marcas de skincare na The Estée Lauder Companies Brasil, “a Clinique [uma das marcas originais do grupo] é a número 1 em vendas no segmento luxo masculino”, com mais de 41% de participação de mercado, e vem crescendo nas principais categorias, como antienvelhecimento, cuidados para os olhos, barbear e cuidados com o corpo.
“A participação do consumidor masculino dobrou nos últimos anos. Temos visto o consumidor mais interessado, procurando ingredientes e benefícios, preocupado com a saúde. A noção de autocuidado mudou e isso deve-se muito à mídia, a celebridades e criadores de conteúdo que expõem seus cuidados diários, criando uma consciência e desejo maiores”, afirma a executiva.
No amplo leque de cuidados, os cabelos masculinos – e a falta deles – também viraram alvo estratégico da indústria. Arnaud Mesange, diretor de Kérastase, ressalta que, hoje, o cabelo é um “atributo de beleza masculina”, que torna o mercado muito relevante.
“Há alguns anos, quem determinava a compra [de produtos para os cabelos] era alguma mulher do círculo de convivência, como mãe, esposa ou irmã, e hoje são eles mesmos quem compram”, conta Mesange. Ainda segundo ele, a empresa percebeu que o couro cabeludo ganhou atenção especial no cenário pós-pandemia, já que a queda de cabelo foi uma sequela da covid-19 para algumas pessoas.
O ramo dos spas também passou por mudanças, igualmente com repercussões da pandemia. Rochele Silveira, segunda geração da família à frente do Kurotel, em Gramado (RS), conta que o público masculino sempre foi presente, porém era mais tímido e mais influenciado por suas mulheres, que precisavam levantar argumentos para convencer seus maridos a irem.
Antes da pandemia, conta a diretora da clínica e spa, a maioria dos homens buscava o emagrecimento ou tratamentos para alívio do estresse e da ansiedade, ambos ligados ao perfil empresarial de sua clientela, com vida social agitada, pouco ou nenhum tempo para atividades físicas. A crise sanitária teria feito uma reviravolta na frequência.
“Os homens passaram a ver como necessidade urgente cuidar de sua saúde física e emocional, de forma preventiva, pensando especialmente na questão da imunidade, muito mais do que a estética, que foi para o segundo plano”, conta. E mais: antes, os clientes eram mais maduros, com idade entre 50 e 70 anos, com os de 60 dominando.
“Pós-pandemia, a clientela de 40 para cima, que não aparecia nunca, aumentou significativamente, por dois motivos: era uma faixa que se arriscava mais a viajar, quando as restrições diminuíram, embora persistissem. E também porque, com as fronteiras no exterior fechadas, esse cliente acabou descobrindo os destinos nacionais. Passado o pior, a frequência nessa faixa etária acabou permanecendo”, conclui.
De volta à joalheria, há que se observar uma curiosa especificidade do mercado brasileiro. Bianca Zaramella, professora de comunicação de moda para joalheria no Istituto Europeo di Design (IED) desde 2017, lembra que até há pouco tempo os homens se limitavam a comprar alianças. Porém, jogadores de futebol como o brasileiro Neymar começaram a investir em suas imagens, o que criou “um desejo por ornamentos no inconsciente coletivo, como um símbolo de status. Eles se tornaram os grandes formadores de opinião de consumo de joias para a grande massa”, afirma.
Entre os exemplos recentes que ela cita está a adoção dos colares de pérola, que já haviam sido incorporados à moda masculina lá fora – Harry Styles, claro, já fora visto trajando um -, mas, no Brasil, somente quando Neymar começou a usá-los em 2022 artistas como Cauã Raymond aderiram e, mais importante, a imagem despertou por aqui, do menino no interior do Brasil àquele das periferias das grandes cidades, o impulso de ter o adereço, mesmo sendo uma bijuteria.
Zamarella dá aulas numa disciplina que ela mesma criou sobre o fenômeno de compra de joias pela internet no país – chave para se entender as mudanças recentes no consumo de joias de prata ou de joias folheadas a ouro – chamadas no universo popular de semijoias – por parte do homem brasileiro de classe média. Avesso à ideia de entrar numa joalheria, ele tem na internet a possibilidade de anonimato aliada ao bom e velho parcelamento.
“Aquela joia que antes o cara tinha que juntar dinheiro e ir numa joalheria para comprar, hoje ele entra no Instagram e compra uma semijoia muito parecida. Isso melhorou o desejo de ornamento dos homens porque, se eles estão adornados como seus ídolos, são reconhecidos como bem-sucedidos”, diz Zamarella.
E as novas apostas, como elas ficam, afinal? Adepto de primeira hora das saias em suas coleções, o estilista João Pimenta tem críticas à proposta agênero. No entanto, diz ele, tudo começa no suposto desinteresse do homem pelo assunto, e desemboca hoje em dia no desaparecimento da moda masculina, “voltada ao homem heterossexual não fashionista”.
“Há quanto tempo não se tenta propor uma nova camisa polo? Há quanto tempo as bermudas masculinas não ganham variantes, com mudanças no volume, nos bolsos etc? Todos os estilistas que desejam fazer uma coleção que cause comoção nas passarelas acabam deixando todos os modelos masculinos com essa pegada oversized ou feminina demais”, afirma.
Pimenta diz que anda “quebrando a cabeça” para fazer uma coleção em que a presença do corpo masculino seja importante de novo, com uma linha de camisaria e menos volume nas calças, por exemplo.
“Não estou voltando para trás. E nem sei como meu cliente, que é gay e hétero também, vai digerir essa masculinização. Mas estou com esse desejo. Para isso, estou olhando para três tipos de personagens: o homem clássico, o caubói, em que se pode trabalhar a sensualidade, e o punk, que é onde eu posso trabalhar a imagem mais contemporânea.”
Os esmaltes, por sua vez, ainda sequer contam com uma linha masculina brasileira. No país, tornou-se costume na moda de rua, mas também nas mãos de celebridades. O empreendedor social Enzo Celulari estampa com frequência suas unhas pintadas nas redes. Tem cerca de 20 frascos, começou com os mais foscos até adotar algum brilho. Sua preferência mesmo é pela chamada “nail art”, os desenhos com esmaltes nas unhas.
Entre amigos, diz que não sofre bullying: “Eles dizem que sou filho de artistas [Claudia Raia e Edson Celulari], que em mim fica bom. Mas o que eu busco mesmo é, como alguém numa posição de influência, quebrar tabus, lembrar as pessoas que elas podem fazer o que quiserem, sim, não importando gênero ou orientação sexual”, explica.
Nesse contexto, Brunno Almeida Maia ressalta que a moda é um mercado que cria demanda, não espera que ela surja. Se a indústria vai ter fôlego para manter as novas apostas, não se pode prever. Entre o surgimento de uma proposta e sua assimilação, há uma distância imensa no tempo histórico, diz ele.
“Não foi porque Chanel propôs o masculino no feminino nos anos 1920 que as mulheres adotaram de imediato o elenco de peças masculinas em seu guarda-roupa”, lembra o pesquisador. “A tendência nasce sempre numa elite – cultural, intelectual, não necessariamente econômica -, e depois a propensão é que isso se dissolva no corpo social. E nesses casos tem papel importante a indústria cultural: o modo como o cinema, as telenovelas, as séries de streaming etc. vão forjar um imaginário novo acerca da masculinidade e da sexualidade.”
Fonte: Valor 03.02.2023