Artigo: Indústria, é hora de rever o receio de utilizar biodiversidade brasileira!

Por Luiz Ricardo Marinello (sócio de Marinello Advogados, Presidente do Conselho Científico Tecnológico da ABIHPEC e coordenador da Comissão de Bioeconomia e Sustentabilidade da Associação Brasileira da Propriedade Intelectual).
Neste pequeno ensaio, abordaremos, de forma muito direta as razões pelas quais a indústria deve repensar o antigo e vetusto preconceito em fazer uso da biodiversidade nativa do Brasil.
A primeira legislação brasileira que tratava de acesso ao patrimônio genético, acesso ao conhecimento tradicional associado e repartição de benefícios foi a Medida Provisória 2.186-16/2001. Uma legislação ruim e que não estimulava o uso de patrimônio genético no Brasil, por uma série de razões, principalmente pela necessidade do usuário buscar autorização prévia junto ao CGEN – o que atravancava a pesquisa e desenvolvimento com formulações contendo ativos da biodiversidade nativa.
Além da legislação torta, o IBAMA elaborou uma operação para penalizar indústrias que, no seu modo de ver, não cumpriam com a legislação.
Pelas razões acima, as indústrias, de um modo geral e com raras exceções, deixaram de fazer uso da biodiversidade nativa, pois se viam sob risco de autuação e a mercê de uma confusão legislativa. De tão forte que foi este movimento, diversas indústrias se apresentavam como “cgen free”, ou seja, que faziam de tudo para eliminar de suas formulações qualquer resquício de biodiversidade nativa, para que ficassem distantes das obrigações da lei.
O que mudou e que motivaria o empresário “cgen free” a deixar de se apresentar desta forma?
A lei 13.123/15 e o Decreto 8.772/16 que, juntos, substituíram a Medida Provisória 2.186-16/01, já trouxeram um ambiente regulatório mais seguro e previsível com o cadastro prévio para utilização de patrimônio genético, por um cadastro eletrônico (SISGEN) e a repartição de benefícios variando entre 0,75% e 1%, em substituição a um racional confuso e que mais parecia uma tributação para toda a cadeia.
A legislação já fará 10 anos com um aumento expressivo de indústrias que começam a cadastrar seus acessos, mas ainda é algo tímido, se observarmos o valor de repartição de benefícios que foram depositados no Fundo Nacional para Repartição de Benefícios (algo em torno de 8 milhões de reais), além da forma não monetária que gira em torno e 16 milhões de reais.
Além do regulatório mais racional da atual lei, o que fundamenta o título deste breve artigo é a adesão do Brasil ao Protocolo de Nagoia, que, de fato, pode representar uma vantagem competitiva para a indústria nacional.
Vale lembrar que o processo de ratificação do Protocolo de Nagoia iniciou no Brasil em junho de 2021, mas encerrou, ou seja, finalizou com a efetiva ratificação com a Promulgação pelo Executivo em 27 de dezembro de 2023, com a publicação do Decreto nº 11.865.
O Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN) criou a Câmara Temática[1] sobre o Protocolo de Nagoia através da Resolução CGEN nº 44, de 13 de março de 2024, com o intuito de discutir os temas necessários para harmonizar a legislação brasileira com o Protocolo.
São diversos “gaps”, inclusive a criação de pontos de controle no Brasil, que possuem a missão, segundo o Protocolo de Nagoia, de investigar o uso de biodiversidade exótica e o seu cumprimento pelas indústrias nacionais.
A Câmara Temática iniciou seu trabalho no ano passado, com uma discussão mais focada sobre a forma do Brasil elaborar seu IRCC (Internationally Recognized Certificate of Compliance), uma espécie de certificado de compliance que deve ser emitido para cada país, comprovando o cumprimento das regras de acesso e repartição de benefícios naquela determinada localidade. Este tende a se tornar um documento muito comum entre as empresas fornecedoras e seus clientes.
Espera-se como resultado das discussões na Câmara Temática uma série de novas resoluções do Cgen ou, até mesmo, uma proposta de alteração da legislação.
No entanto e independentemente dos resultados das futuras alterações legislativas, é correto afirmar que o Protocolo de Nagoia já passa a gerar obrigações para as indústrias nacionais, que podem ser encaradas como ônus ou oportunidades.
O Protocolo de Nagoia, grosseiramente falando, representa um campo de países fornecedores e usuários de matérias primas em que deve existir um alto nível de transparência em relação ao custo desta troca, que resulta em regras para acesso e repartição de benefícios.
Uma indústria que faz uso de patrimônio genético brasileiro em suas formulações já possui o racional de acesso e repartição de benefícios que nossa legislação local define. Com o advento do Protocolo de Nagoia, a indústria nacional também terá que se preocupar com o custo que deverá repartir com países provedores de biodiversidade exótica e, neste aspecto, parece fazer sentido afirmar que no médio prazo o custo será menor em fazer uso de matérias-primas que já são fornecidas por fornecedores sediados no Brasil, se comparado a fornecedores sediados no exterior.
A título de exemplo, o Peru estima o piso de 1% de repartição de benefícios, com uma abrangência maior em relação aos usuários pagantes e a Austrália escalona o seu racional de repartição de benefícios, podendo chegar a 3% do faturamento bruto da empresa.
Além do aspecto do racional em si, é necessário que a indústria avalie também o custo de transação com a contratação de um advogado local, para minimizar qualquer risco desnecessário, e para que haja a emissão do IRCC em menor tempo possível.
Concluindo, faz sentindo que a indústria avalie o custo/benefício da utilização de cada matéria-prima e seu centro de origem, observando o cenário envolvendo acesso e repartição de benefícios.
Com o cenário que se desenha (nova legislação somada ao advento do Protocolo de Nagoia) é esperado que a utilização de matérias-primas nativas do Brasil venha a se tornar uma vantagem competitiva, tendo ainda como reflexo indireto o fortalecimento das cadeiras de fornecimento (e seus atores).
[1] Art. 8º As Câmaras Temáticas serão criadas pelo CGen para subsidiar as decisões do Plenário a partir de discussões técnicas e apresentação de propostas sobre temas ou áreas de conhecimento específicos relacionados ao acesso e à repartição de benefícios. (Decreto 8772/16)