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O encanto de saber ouvir

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Marcas transformam o feedback de suas comunidades digitais em insights poderosos para lançar e aprimorar produtos e, de quebra, conquistar a lealdade dos clientes

No ano passado, durante uma videoconferência promovida pela Sallve, uma consumidora revelou a representantes da marca de skincare que não usava saia porque ficava com as coxas assadas. Outro cliente, triatleta, disse que sofria do mesmo problema por causa do atrito gerado nas pernas pela prática da atividade física. A empresa, então, cruzou esses dois casos com as respostas do “Quiz da Pele”, enquete mantida permanentemente no site. Com o resultado dessa pesquisa em mãos, acionou o departamento de P&D para pensar na criação de um produto que prevenisse e tratasse assaduras.

Numa etapa seguinte, a Sallve enviou amostras desse item a um grupo seleto de clientes, que deram sua opinião a respeito da fórmula, da fragrância e do preço. Até que o gel hidratante antiatrito foi enviado a influenciadores digitais — que imediatamente resenharam o produto — e chegou ao mercado no início deste ano, tornando-se, em poucos meses, um dos carros-chefes da marca. “Colocar um produto como esse no mercado, depois de consultar nossos consumidores e ver os 800.000 formulários respondidos, é uma vitória coletiva”, diz Daniel Wjuniski, CEO da Sallve, uma das principais marcas nativas digitais do mercado de beleza no Brasil. 

Mais conhecidas pela sigla em inglês DNVB (Digital Native Vertical Brands), essas marcas se caracterizam por carregar em seu DNA a vocação de uma relação com o consumidor sustentada em dados. “Com a chegada do novo milênio, dos blogs e depois das redes sociais, as marcas passaram a ter acesso mais direto ao consumidor, e isso abriu as portas para um diálogo inédito”, diz Iza Dezon, consultora expert em tendências de moda, beleza e comportamento. Segundo a especialista, as marcas criam ativações, algoritmos e mantêm comunidades de consumidores com as quais interagem propositalmente para capitalizar, num conjunto de ações que são a base do social listening (ou “escuta ativa”, numa tradução livre). “Ao impulsionarmos as resenhas dos influenciadores, estabelecemos uma dinâmica em que as pessoas passam a influenciar outras pessoas. É um exército de milhares de microinfluenciadores”, acrescenta Wjuniski, da Sallve.

Outras marcas, não nativas, também se tornaram experts digitais. A Salon Line é uma delas. Fundada em 1999 e sempre com foco na mulher negra (primeiro, importando itens para alisamento de cabelo; depois, produzindo-os no Brasil), a marca tem a maior comunidade brasileira de beleza no TikTok, com 2,5 milhões de seguidores. Mantém contratos anuais com influenciadoras digitais, a quem envia também produtos para que sejam testados e resenhados. Os posts e os vídeos feitos por essas embaixadoras da marca são apenas a ponta de um iceberg sustentado por uma equipe formada por cerca de 100 pessoas na área de marketing, sem contar os 50 colaboradores dedicados a interagir com as consumidoras pelas redes sociais. “Temos um banco de voluntárias que diariamente frequentam nosso centro técnico, que fica junto ao laboratório e à fábrica, onde são testados e avaliados todos os produtos”, conta Kamila Fonseca, diretora de marketing da Salon Line. “A gente efetivamente escuta, pensa, planeja e transforma um produto com base no que elas nos falam.” Uma das máscaras hidratantes, por exemplo, foi criada a partir do contato com a comunidade. A companhia percebeu que muitas consumidoras passavam maionese no cabelo a fim de alisar os fios. Elas apareciam em vídeos no YouTube­ comandando tutoriais de aplicação, mas também reclamando do cheiro. Foi quando a marca teve o insight de desenvolver uma máscara capilar com todas as propriedades do alimento — que é rico em óleos e proteína do ovo —, mas com uma fragrância cosmética. 

Do digital para o varejo e vice-versa

A estratégia de social listening de uma marca DNVB, por mais contraditório que possa parecer, não dispensa a ocupação de um espaço tradicional: o varejo. Tanto é que a Sallve, a GE Beauty, da blogueira Camila Coutinho (veja box), e a Creamy Skincare lançaram lojas físicas. Criada em 2019 com um investimento inicial de 5 milhões de reais, a Creamy abriu um espaço pop-up em um shopping em Curitiba e já planeja inaugurar mais unidades em outras cidades, com o objetivo de faturar 80% mais neste ano, em comparação com 2021. “O contato em ponto de venda físico também permite sentirmos o pulso do consumidor”, explica Daniel Wjuniski, da Sallve, que abriu recentemente uma loja anexa ao escritório da empresa, no bairro de Pinheiros, em São Paulo. 

Marcas de beleza tradicionais têm feito o caminho inverso, criando ou remodelando produtos graças ao feedback de sua comunidade digital. Na centenária Avon, a estrutura de social listening congrega um time interno multifuncional e agências de comunicação e marketing, que observam tudo o que ocorre nas redes sociais da marca, incluindo as interações com o público e o mapeamento das principais tendências de mercado. Foi assim que a marca criou a máscara de cílios 5 em 1 Genius, produto que surgiu graças a uma ferramenta de inteligência artificial que permitiu que a Avon navegasse pela maior rede de dados de beleza do mundo para ler, filtrar, entender e processar 15.000 comentários e ranquear as principais características desejadas em uma máscara de cílios. “Depois de processar todas essas informações, nós também descobrimos que 60,97% dos consumidores querem mais de um benefício em seu produto, o que nos fez chegar a essa solução 5 em 1”, conta Danielle Bibas, vice-presidente de mar­keting da Avon Brasil. 

Partindo de inputs de sua comunidade, O Boticário lançou recentemente a linha ­Malbec Club Antiqueda. Os produtos surgiram depois de a empresa cruzar dados mapeados com dúvidas recebidas no Instagram ­@clu_b, um canal aberto pela marca para debater sobre cuidados masculinos, e identificar uma parcela de jovens preocupados com o tema calvície. A partir disso, a área de P&D desenvolveu uma fórmula com foco em retardar o avanço da perda de cabelos. As vendas ficaram 39% acima do projetado, e o kit com o tratamento completo segue sendo o mais vendido da linha. Com 3 milhões de seguidores no Instagram e presença em Twitter, TikTok, Facebook e LinkedIn, a Natura, por sua vez, lançou mão de dinâmicas de grupo e conversas com 900 jovens de três países para cocriar a Humor Liberta, nova fragrância unissex à base de pimenta-rosa e copaíba. 

Não basta interagir, é preciso reagir

Uma lição que as marcas de beleza aprenderam com o social listening é que para cativar sua comunidade não basta apenas falar dos produtos. É preciso entreter e se posicionar em relação a temas da atualidade. Assim, a Natura realizou no metaverso, no dia 1o de abril, o Festival do Lado, com shows de Gloria Groove, Tropkillaz e Tasha & Tracie. O evento permitiu a circulação de 30.000 pessoas entre os diversos espaços, como palco de atrações, loja conceito, área VIP no backstage e área de conexão onde os usuários puderam se encontrar. A Avon triplicou o faturamento no e-commerce em 2021 depois de interagir com os usuários nas redes sociais levando em consideração acontecimentos, conflitos e memes que poderiam ser oportunidades para falar sobre a marca, seus produtos e causas que apoia. Em 2022, segue com essa estratégia: recentemente, posicionou-se sobre afeto na comunidade LGBTQIA+, racismo e pluralidade das mulheres negras, temas para os quais a Salon Line também produz conteúdos e avança algumas casas no relacionamento com as clientes. “Nosso segredo nas redes sociais não é só falar de produto. Tentamos entrar na vida dessas mulheres, porque temos de ajudá-las nas questões familiares ou quando têm problemas financeiros”, defende Kamila Fonseca, diretora de marketing da marca. Para o YouTube, por exemplo, a Salon Line produziu vídeos a respeito de maternidade, homofobia e racismo. “Tentamos falar de forma didática e construtiva tudo o que é importante para nossa consumidora, como se fôssemos uma amiga dela.” Para Marcela de Masi Nogueira, diretora de comunicação do Boticário, ouvir o que os consumidores têm a dizer e colocar suas necessidades no centro do negócio são ações fundamentais para que a marca possa consolidar e aumentar sua relação com a comunidade. E conclui: “Não se trata apenas de ouvir o que eles estão dizendo, mas principalmente de prestar atenção”.

 

 

 

Fonte: Exame 28.04.2022

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