Pós-pandemia: consumidores irão compensar o tempo perdido?
Especialistas discutem se haverá o chamado “revenge buying”
Uma notícia divulgada na segunda-feira (13) chamou atenção do mundo da moda: a francesa Hermès faturou 19 milhões de Yuan, o equivalente a US$ 2,7 milhões em vendas no dia da reabertura da loja em Guangzhou, no sul da China, no último sábado. De acordo com o WWD, acredita-se que o valor obtido em um dia foi o mais alto para uma única boutique na China.
O comportamento do chinês em relação ao consumo de luxo é reflexo do chamado “revenge buying”. Desde fevereiro, quando o país já estava em quarentena, começou a se falar sobre o termo de forma real ou imaginária nas redes sociais locais. No geral, os posts documentavam fantasias do futuro, como restaurantes abertos para uma boa refeição, ou diziam que uma viagem à Paris cancelada seria uma boa desculpa para uma visita à boutique da Louis Vuitton em Pequim, na esperança de que uma bolsa de luxo “poderia curar a ferida” do lockdown. Ou seja, um bom mimo para suprir o desejo interrompido e celebrar o mundo e a vida pós-pandemia.
“O consumismo está engranhado nas pessoas. O ‘revenge buying’ é parte de uma fragilidade interna e uma identidade muito ligada ao que se consome”, diz Iza Dezon, especialista em tendência e sócia-fundadora da Dezon Consultoria Estratégica, representante exclusiva do bureau de tendências Peclers Paris na América Latina.
Emanuele Farneti, diretor de conteúdo da Vogue Itália, disse em bate-papo ao vivo com no Instagram da Vogue com a diretora Paula Merlo que, apesar de não acreditar que a Europa seguirá o mesmo caminho na China, pensa que a compra pode ser um meio de comemorar o fim do isolamento social. “Quando pudermos voltar a comprar, mesmo que um simples sapato, óculos de sol ou bolsa, será como uma pequena celebração.” Dominique Oliver, fundador e CEO da Amaro, acredita que consumir estará logo de volta à rotina. “Veremos uma forte tendência das pessoas tentando retornar ao que consideram normal no seu dia a dia, o que também inclui, para uma parte da população, investir em roupas, entretenimento, experiências etc”.
O termo “baofuxing xiaofei” (“revenge buying”) foi usado pela primeira vez na China nos anos 80 para descrever a demanda reprimida por produtos estrangeiros que foram negados aos seus cidadãos quando a nação foi fechada para o mundo. Antes disso, Deng Xiaoping instituiu a política de abertura, no final dos anos 70, e marcas ocidentais começaram a inundar um novo e gigante mercado.
Há muitas dúvidas, no entanto, se uma situação como essa poderia se repetir na Europa ou no Brasil. Passada a pandemia, terá o mercado de luxo um rebote com o “revenge buying”, como aconteceu na China, ou o espírito de sustentabilidade e consumo controlado despertará no consumidor? “Acredito que neste cenário existe um desejo de liberdade reprimido que se reflete nas compras também”, afirma Juliana Santos, à frente da multimarcas Dona Santa, em Recife. Apesar disso, ela acha que a qualidade e os valores pautarão o consumo. “As compras serão cada vez mais pensadas. Os consumidores irão consumir menos e melhor. Afinal, perceberam que não precisam de muito para viver.” A jornalista Lilian Pacce compartilha do mesmo pensamento: “a roda do mercado precisa ter outro ritmo, a quantia do consumo precisa ser revista, porque estávamos vivendo um período de excesso. Eu espero que a qualidade seja mais valorizada”.
Natalie Klein, da multimarcas NK Store, em São Paulo, também concorda. “As pessoas vão ter mais consciência e procurar marcas com história para contar, que tenham propósito de verdade, e não pregado na parede. Acho que o consumidor agora está mais ávido do que nunca a olhar para isso, e vão querer fazer compras a longo prazo, que são de qualidade. Eu torço para que isso aconteça”. Mas a empresária acredita que vai existir o consumo por recompensa. “Há aqueles que pensarão que a vida é rápida, pode acabar em minuto com uma doença, e vão querer se presentear”, afirma. “Talvez na China o grupo de ‘revenge spending’ é maior, e aqui, se existir, será menor. É um mercado muito aquecido, com um população enriquecendo a cada ano, diferente do Brasil, que vamos ter uma recessão inevitável”. Lilian completa: “A China está em ascensão, então quando esse acesso é restrito, eles voltam sedentos, não é o caso do Brasil. Mas eu não acredito só em uma tendência de mercado, vejo os dois extremos”.
Embora Iza Dezon ache difícil fazer uma análise com base na Hermès (“porque é uma marca que indica escolhas muito específicas dentro do luxo, além de ser cara e ter um grande leque de produtos”), ela acredita que existirão três padrões principais de comportamentos após a pandemia devido à falta de consumo: “Quem realmente não quer pensar no que aconteceu e vai sair desenfreado; quem vai sair dessa sem deixar de consumir, mas fará escolhas melhores; e quem vai questionar o relacionamento com o consumo”. Além disso, ela diz que o mercado também influencia nesse cenário. “Depende muito da corresponsabilidade do mercado saber se comportar nessa retomada, em produzir produtos mais éticos e mais sustentáveis com objetivo de impacto ambiental positivo. Então depende das escolhas dos consumidores e das atitudes das marcas”.
Para o escritor, consultor e jurado do Prêmio Muda André Carvalhal, o poder aquisitivo e a classe social é um fator determinante neste cenário. “O consumidor de luxo vai sim comprar por conta de uma demanda reprimida. Isso já aconteceu em outros momentos de crise ou de situações de grande trauma, como na crise de financeira de 98, e no 11 de setembro, inclusive com estímulo do governo para que se consuma”, afirma. Mas para aqueles que terão sua renda reduzida e perderão o emprego, ele pensa que mesmo com incentivo o consumo de moda não será prioridade.
Tanto Lilian Pacce como Dominique veem também um crescimento das compras digitais na pós-pandemia. “Quem ainda não tinha aderido, provavelmente teve essa experiência agora e viu que é mais simples do que parece”, diz a jornalista. “Demoraremos mais tempo para recuperar o ritmo econômico do que outros mercados, como a China, mas o e-commerce também tem uma oportunidade muito clara nesse cenário, uma vez que estamos vendo as pessoas aderirem cada vez mais ao comércio online”, afirma empresário, que enxergou no isolamento social uma brecha para estreitar ainda mais os laços com seus consumidores, iniciando novas conversas, além de inaugurar um canal de atendimento via WhatsApp.
Fonte: Vogue 16.04.2020